O globo, n. 31664, 16/04/2020. Especial Coronavírus, p. 4

 

Recados do quase ex-ministro

André de Souza

Gustavo Maia

Leandro Prazeres

Renata Mariz

16/04/2020

 

 

Mandetta defende isolamento, critica cloroquina e fala de sucessão

JORGE WILLIAMDupla. O ministro Mandetta e o número 2 da pasta, Gabbardo. Ao responder se aceitaria assumir o cargo de seu atual chefe, o secretário-executivo disse que sairá junto com ele, ajudando a transição

 O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ensaiou ontem uma despedida na entrevista para divulgar os dados mais recentes sobre o novo coronavírus no país. Ao lado de seus dois principais auxiliares no enfrentamento da pandemia, o secretário-executivo João Gabbardo dos Reis e o secretário de Vigilância em Saúde Wanderson de Oliveira, Mandetta mencionou o “descompasso” entre as ações do ministério e o governo e defendeu a política de isolamento social, criticada pelo presidente Jair Bolsonaro.

O ministro também fez contundentes ressalvas ao uso da cloroquina no tratamento de pacientes com Covid-19, falou abertamente sobre sua sucessão à frente da pasta e disse não ser astrólogo para fazer previsões. Mas espera que a curva de contaminação continue sendo achatada com medidas de distanciamento social.

O ministro contou que nomes cotados para sucedê-lo têm entrado em contato e que ele tem incentivado os possíveis candidatos a assumirem o seu lugar. Ao longo de toda entrevista coletiva, Mandetta fez muitos elogios aos técnicos do Ministério da Saúde e disse que o trabalho desenvolvido não será prejudicado no caso de mudanças.

— Alguns nomes que vão sendo assuntados ligam para mim e eu falo: venha — relatou o ministro.

DEMISSÃO ABORTADA

Sobre as divergências com o presidente, Mandetta afirmou que Bolsonaro quer uma outra “posição” do Ministério da Saúde, mas que ele, baseado na ciência, não pode oferecer. Para o ministro, independentemente de quem seja escolhido para sucedê-lo, o respaldo do presidente será fundamental:

— O importante é que, seja lá quem o presidente colocar no Ministério da Saúde, que ele confie e que ele dê as condições para que a pessoa possa trabalhar baseada na ciência, nos números, na transparência dos casos e para que a sociedade possa, junto com seus governadores e seus prefeitos, tomar as melhores decisões. Mais tarde, em entrevista à Veja, o ministro disse que não há chance de continuar:

— 60 dias tendo de medir palavras. Você conversa hoje, apessoa entende, diz que concorda, depois muda de ideia e fala tudo diferente. Você vai, conversa, parece que está tudo acertado e, em seguida, o camarada muda o discurso de novo. Já chega, né? Já ajudamos bastante.

Sobre a cloroquina, Mandetta destacou os riscos que a droga pode representar para os pacientes. Ele ressaltou que médicos podem ter visões diferentes sobre o tratamento mais adequado para cada paciente, eque a decisão fina lé das famílias. De acordo com o ministro, isso é muito diferente de o Ministério da Saúde vira público e avalizara utilização de uma medicação cuja eficácia no combate ao vírus está sendo estudada, com graves efeitos colaterais possíveis.

— A cloroquina pode fazer o coração bater errado e antecipar um infarto ou uma arritmia. Quando se dá cloroquina para uma pessoa de 70 ou 80 anos, essa pessoa pode morrer, pois ela acelera o coração —explicou Mandetta.

As medidas de isolamento social tomadas por governadores foram criticadas por Bolsonaro desde o início. O presidente afirmou que havia “histeria” e “exagero”. Mandetta demonstrou sua divergência.

— Esses países que não fizeram (o isolamento) e a curva foi muito aguda, o sistema deles não conseguiu, não teve capacidade. E o nosso (isolamento), alguns acham que foi exagero. Por vias de decisões, principalmente de governadores e prefeitos, nós passamos duas semanas, logo no início da circulação dos casos, com uma redução muito grande da dinâmica social. Houve adesão muito grande da sociedade brasileira —afirmou, acrescentando que não é “astrólogo” para fazer previsões. — Acho que conseguimos tirar aquela curva enorme e conseguimos abrandá-la, fruto de um sacrifício da sociedade. Agora vamos ver se conseguimos administrar essa curva.

ESTAMOS CANSADOS

No Palácio do Planalto, a cúpula do governo viu a entrevista de ontem como um momento para marcar a despedida, mas que não provocou irritação porque “já estava precificado”. A troca no comando da Saúde deve ocorrer hoje. Ficou, entretanto, a percepção de que o ministro “usou e abusou” por ter passado quase duas horas monopolizando as atenções no Planalto.

A princípio, Mandetta não participaria da entrevista coletiva. Ele só decidiu falar após o pedido de demissão de Wanderson de Oliveira se tornar público. A secretaria comandada por Wanderson é a responsável pelas principais ações de combate ao novo coronavírus. O ministro, no entanto, não aceitou o pedido de demissão e fez questão de afirmar que o auxiliar continuará na equipe enquanto ele permanecer na pasta:

— Hoje teve muito ruído por causa do Wanderson, por causa de toda essa ambiência. Ele falou lá para o setor dele que iria sair. Aquilo virou uma... Chegou para mim. Já falei que não aceito. Wanderson continua. Acabou esse assunto. Vamos trabalhar juntos até o momento de sairmos juntos do Ministério da Saúde. Por isso eu fiz questão de vir aqui nessa coletiva de hoje.

O próprio Wanderson disse que não queria tornar pública sua saída, queria só um comunicado aos seus subordinados. Ele lembrou que é um servidor público de carreira e que o cargo era “passageiro”.

—Sou um servidor público de carreira, do Hospital das Forças Armadas, desde 2009. Cargos eletivos (comissionados), já passei por vários no Ministério da Saúde. Nenhum de nó sé insubstituível. A equipe da Secretaria de Vigilância em Saúdeé uma equipe extremamente qualificada — disse Wanderson, que respondeu com franqueza por que pediu demissão. — Olha, estamos muito cansados. Estamos muito cansados.

Gabbardo, secretário executivo da pasta eque chegou a ser cotado para substituir Mandetta, negou essa possibilidade e disse que sai junto com o chefe.

—Eu tenho um compromisso como ministro Mandetta. Se ele sair eu saio com ele. Eu entrei no Ministério da Saúde muito jovem, em 1981. Vou fazer 40 anos. Eu não vou jogar no lixo meu patrimônio— afirmou Gabbardo.

Antes da coletiva, Mandetta se despediu de deputados da frente parlamentar da saúde e foi aplaudido pelos antigos colegas. O ministro agradeceu pelo apoio no período e deixou claro que apoiará seu sucessor, dizendo que passará aos parlamentares um relatório sobre a epidemia no Brasil.

“Esses países que não fizeram (o isolamento) e a curva foi muito aguda, o sistema deles não conseguiu, não teve capacidade. E o nosso (isolamento), alguns acham que foi exagero”

Luiz Henrique Mandetta, sobre medidas restritivas

ISOLAMENTO SOCIAL

O presidente Jair Bolsonaro tem defendido o abrandamento do isolamento social no Brasil.

“Parece que eu sou contra o presidente e o presidente é contra mim. Não, são visões diferentes do mesmo problema.”

Sobre o enfrentamento à pandemia

DIVERGÊNCIAS

Mandetta e Bolsonaro divergem das ações de combate à doença.

“Alguns nomes que vão sendo assuntados ligam para mim e eu falo: ‘venha’”

Ao citar os cotados para comandar o Ministério da Saúde

DE SAÍDA

A popularidade e as ações do ministro acabaram irritando Bolsonaro.

“Nós não somos astrólogos, não fazemos previsões. Pegamos as informações e olhamos. Acho que conseguimos tirar aquela curva enorme e conseguimos abrandá-la, fruto de um sacrifício da sociedade”

Explicando a evolução da Covid-19 no Brasil e as medidas tomadas

DEFESA DA CIÊNCIA

O ministro da Saúde tem defendido ações técnicas contra o vírus

“A cloroquina pode fazer o coração bater errado e antecipar um infarto ou uma arritimia”

Explicando sobre o uso de cloroquina contra a Covid-19

APOSTA DO PRESIDENTE

Mesmo sem comprovação, Bolsonaro defende o uso da substância.