Correio braziliense, n. 20787 , 21/04/2020. Política, p.2

 

Bolsonaro: "Eu sou a Constituição"

Ingrid Soares

Augusto Fernandes

21/04/2020

 

 

Após participar de manifestação em defesa do fechamento de instituições, presidente afirma que pedidos antidemocráticos foram feitos por “infiltrados”. Ele diz respeitar os demais poderes e personificar a Carta Magna. Especialistas não veem ambiente para impeachment

Após comparecer e discursar em um ato, no domingo, que tinha como mote principal a intervenção militar — e ser duramente criticado por parlamentares, ministros e governadores —, o presidente Jair Bolsonaro decidiu adotar um tom mais conciliador. Ontem, negou que tenha qualquer intenção antidemocrática e disse apenas expressar sua opinião ao tecer críticas à atuação de outros poderes. Ele afirmou, ainda, que os pedidos ilegais e que atentam contra a democracia foram feitos por “infiltrados” e não por ele. Na manifestação, houve defesa da reedição do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que inaugurou a fase mais repressiva da ditadura militar (1964-1985), e do fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF).

Bolsonaro, no entanto, afirmou ser ele próprio a Constituição, ao ser questionado sobre a presença na manifestação. “O que eu tomei de providência contra a imprensa, contra a liberdade de expressão? Eu, inclusive, sou contra as prisões administrativas que estão ocorrendo no Brasil. Prenderam uma mulher de biquíni na praia no Recreio (Rio de Janeiro), prenderam na praia de Boa Viagem (Recife) um aposentado da Aeronáutica. Eu sou, realmente, a Constituição”, frisou.

Segundo Bolsonaro, geralmente quem faz algum tipo de conspiração visa chegar ao poder, o que não se aplica ao caso dele. “Eu já estou no poder. Já sou o presidente da República. Então, estou conspirando contra quem, meu Deus do céu? Falta um pouco de inteligência daqueles que me acusam de ser ditatorial”, alfinetou.

O chefe do Executivo reafirmou respeitar os demais poderes, mas argumentou que também tem opinião. “Não vou pecar por omissão. Respeito o STF, o Congresso, mas eu tenho opinião. Não pode qualquer palavra minha ser interpretada por alguns como agressão, como ofensa”, reclamou.

Perguntado sobre qual mensagem daria aos apoiadores que clamam pela volta do AI-5, Bolsonaro rebateu: “Não quero papo com vocês. Quem não quiser ouvir, vá embora. Todo e qualquer movimento tem infiltrado, tem gente que tem a sua liberdade de expressão. Respeite a liberdade de expressão”, disse. “Pegue o meu discurso, deve dar dois minutos. Não falei nada contra qualquer outro poder. Muito pelo contrário. O povo quer voltar ao trabalho. O povo quer isso. Estavam lá saudando o Exército brasileiro. É isso. Mais nada. Fora isso, é invencionice, é tentativa de incendiar uma nação que ainda está dentro da normalidade. No que depender do presidente Bolsonaro, democracia e liberdade acima de tudo.”

Erros

Por mais que Bolsonaro tenha justificado as manifestações de domingo como liberdade de expressão, acabou incitando um movimento que pedia o fechamento do Congresso Nacional e do STF, além da instauração de um novo AI-5 e uma intervenção militar no país.

Na visão de especialistas, o episódio do fim de semana se junta a uma série de outras ocasiões em que o presidente ultrapassou os limites do poder que exerce. “Reiteradamente, Bolsonaro pratica atos graves de afronta ao Supremo, ao Congresso e a parlamentares específicos. Todas essas situações são absolutamente incompatíveis com aquilo que se espera do presidente da República”, comentou Conrado Gontijo, doutor em direito penal pela Universidade de São Paulo (USP).

Para o professor, juridicamente, Bolsonaro já deveria responder a um processo de impeachment, porque estaria se portando de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo. Contudo, é difícil imaginar que o Congresso analise algum pedido de afastamento do presidente neste momento de pandemia. “Não há ambiente político para que avance um processo de impeachment. As variáveis para que isso se viabilize são muitas. As jurídicas já estão dadas. Mas o encaminhamento depende de outros fatores”, analisou.

Doutor em direito constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Alexandre Bernardino acrescentou que, no meio de uma crise mundial de saúde tão grave, Bolsonaro desafia a ciência e a democracia de forma desnecessária. Segundo o especialista, o presidente não pode se colocar acima da Constituição. “A Presidência da República, e muito menos a pessoa do presidente, não são a Constituição. A Constituição é um conjunto de instituições. O povo quem a fez e concordou em se submeter a ela. As pessoas estão sempre abaixo da Constituição, independentemente de quem seja”, frisou.

Bernardino ainda destacou que “o fato de Bolsonaro dizer que foi eleito e que já está na presidência não o exime da possibilidade de querer um golpe de Estado, porque a ameaça de um golpe já existe permanentemente”. “Os filhos dele sempre falaram disso, bem como os seguidores dele que o cercam. Estamos vivendo um processo muito ambíguo, de muita instabilidade institucional e democrática”, alertou.

“Aqui é democracia”

Ao responder a um dos apoiadores na saída do Palácio da Alvorada, que pedia o fechamento do STF, Bolsonaro recriminou o comentário. “Esquece essa conversa de fechar. Aqui não tem que fechar nada. Aqui é democracia. Aqui é respeito à Constituição brasileira. Aqui é a minha casa, é a tua casa. Eu peço, por favor, que não se fale isso aqui. Supremo aberto, transparente. Congresso aberto, transparente”, afirmou.

Frase

“Estavam lá (o povo) saudando o Exército brasileiro. É isso. Mais nada. Fora isso, é invencionice, é tentativa de incendiar uma nação que ainda está dentro da normalidade. No que depender do presidente Bolsonaro, democracia e liberdade acima de tudo”

 Jair Bolsonaro, presidente da República

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Incômodo entre militares

Jorge Vasconcellos

Renato Souza

21/04/2020

 

 

O ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, divulgou nota, ontem, afirmando que as Forças Armadas trabalham para manter “a estabilidade do país, sempre obedientes à Constituição”. A manifestação dele ocorreu um dia depois de o presidente Jair Bolsonaro participar de um ato, em Brasília, em defesa da reedição do Ato Institucional nº 5 (AI-5) e do fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF).

“As Forças Armadas trabalham com o propósito de manter a paz e a estabilidade do país, sempre obedientes à Constituição Federal. O momento que se apresenta exige entendimento e esforço de todos os brasileiros. Nenhum país estava preparado para uma pandemia como a que estamos vivendo”, ressaltou, na nota. “Essa realidade requer adaptação das capacidades das Forças Armadas para combater um inimigo comum a todos: o coronavírus e suas consequências sociais. É isso o que estamos fazendo.”

A participação do presidente da República em uma manifestação que teve objetivos inconstitucionais incomodou o meio militar, principalmente por ter ocorrido em um local simbólico, o Quartel General do Exército (QGEx), no Setor Militar Urbano de Brasília. É de lá que partem determinações e orientações para organizações militares da Força em todo o país.

A ida do presidente ao ato não foi avisada com antecedência. Militares que estavam de plantão no dia tiveram de sair às pressas de seus postos para garantir a segurança do chefe do governo, em meio à multidão.

Mesmo sendo uma via pública, a Avenida Duque de Caxias, que passa em frente ao Quartel General, é de responsabilidade do Exército, que faz o policiamento do local, não da Polícia Militar ou de outros órgãos de segurança. A presença obrigatória dos soldados, que acabaram aparecendo nas imagens, gerou, nos bastidores, preocupações de militares de alta patente. O presidente chegou a subir em uma viatura para discursar.

O general Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo da Presidência, também se manifestou a respeito do protesto. “O Exército é instituição do Estado. Não participa das disputas de rotina. Democracia se faz com disputas civilizadas, equilíbrio de Poderes e aperfeiçoamento das instituições. O EB (@exercitooficial) tem prestígio porque é exemplar, honrado e um dos pilares da democracia”, escreveu, no Twitter.

Embora tenha sido demitido do governo, Santos Cruz conta com grande prestígio nas Forças Armadas. Ele comandou missões da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti e no Congo, onde chegou a liderar operações armadas contra grupos terroristas.

Encontro

O Correio apurou que, no domingo, após a manifestação, os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica se reuniram para tratar do assunto. No encontro, segundo informou uma fonte com acesso à alta cúpula militar, eles disseram que há um limite para tudo e que Bolsonaro não contará com o apoio das Forças Armadas na execução de um golpe de Estado.

Os comandantes ressaltaram que o verdadeiro inimigo é o novo coronavírus, que já infectou mais de 40 mil pessoas no país, com quase 2.600 mortos. Na reunião, também comentaram o fato de a ida de Bolsonaro ao ato ter provocado aglomeração, em desacordo com as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) para conter o avanço da pandemia.

No Exército, mais de 25 mil militares estão engajados em operações de apoio aos estados na guerra contra a pandemia. “Estamos na linha de frente, apoiando o governo federal, os governos estaduais e os municípios no combate a uma das maiores crises vividas pelo Brasil nos últimos tempos”, disse o comandante Edson Pujol, na Ordem do Dia, alusiva ao Dia do Exército, celebrado no domingo, na mesma data da manifestação com Bolsonaro.

Frase

“O Exército é instituição do Estado. Não participa das disputas de rotina. Democracia se faz com disputas civilizadas, equilíbrio de Poderes e aperfeiçoamento das instituições”

Santos Cruz, general do Exército