O globo, n. 31667, 19/04/2020. Opinião, p. 2

 

A crise global e as peculiaridades brasileiras

19/04/2020

 

 

O pacote de dificuldades que a pandemia deste coronavírus entrega ao mundo é de alto poder destrutivo, mas pode ser confrontado pelo arsenal de conhecimentos acumulados nas crises econômicas do século XX, sem deixar de lado preocupações com as instituições políticas.

A paralisação das economias pelo isolamento forçado de parte da população do planeta causada pelo vírus tem, é claro, de ser revertida, evitando-se que o travamento da grande engrenagem produtiva instalada pela interconexão das economias no pós-guerra provoque duradouras recessões por toda parte. Os PIBs se retraem, mas é preciso reduzir ao mínimo as perdas, que não deverão ser pequenas, e apressar a volta do crescimento.

Pelo que indicam as previsões do Fundo Monetário Internacional, o “ponto de não retorno” para uma crise histórica que, segundo o próprio FMI, rivalizará com a Grande Depressão de 1929/30, já foi ultrapassado. O relatório divulgado na terça-feira pela economista-chefe da instituição, Gita Gopinath, prevê uma retração da economia mundial de 3%. Considerando-se que a estimativa anterior do Fundo era de um crescimento de 3,4%, significa que, em relação a seus cálculos anteriores, o FMI estima uma retração de mais de 6%, maior que na Grande Recessão de 2008/9, a mais vertiginosa queda da produção mundial desde 1929/30. No primeiro trimestre, o PIB da China encolheu 6,8%, taxa negativa jamais alcançada nos 28 anos em que o índice é calculado.

Numa economia globalizada, muito integrada, as ondas de impacto da crise se expandem, e causam estragos mais rapidamente do que no primeiro terço do século passado, na Grande Depressão. Em contrapartida, a própria integração entre os países e a existência de instituições multilaterais facilitam ações conjuntas contra as forças da depressão, apesar do aumento do poder político de partidos e grupos de ultradireita, nacional-populistas, xenófobos, contrários à globalização. Há ajustes a se discutir nesta integração, porém é irrefutável o poder demonstrado pelo avanço do capitalismo na Ásia, capaz de, na China, resgatar da miséria 800 milhões de pessoas desde 1978, início do programa de reforma do modelo maoista fracassado.

A crise histórica em que o Brasil e o mundo estão exige que as sociedades e seus líderes políticos tenham clareza sobre o que precisa ser defendido: democracia, as liberdades em geral, a vida, o conhecimento científico, a manutenção dos canais de trocas comerciais, por exemplo. A Depressão de 1929/30 ensinou que eram necessárias políticas expansionistas —juros no chão, crédito, gastos públicos — para evitar o colapso do sistema produtivo. O antídoto funcionou na recessão de 2008/9. E também é essencial não cair na tentação do protecionismo. Fechar fronteiras na suposta defesa dos empregos será suicídio. Foi o que provocou a Grande Depressão. A crise é global, mas os países têm suas peculiaridades. Desde a redemocratização, em 1985, o Brasil atravessou momentos difíceis e consolidou o regime de democracia representativa. Preserva o rodízio no poder de forças políticas diversas pelo voto popular e se mantém assim há 35 anos, período contínuo de extensão nunca verificada na era republicana. De acordo com o FMI, neste ano o país deve mergulhar numa recessão de 5,3%, a maior desde 1940, quando começou a ser calculada a atual série estatística do PIB. Se confirmada, ultrapassará a recessão na faixa de 3% em 2015 e 2016, na gestão Dilma Rousseff, recorde até hoje. Um presidente como Jair Bolsonaro é mais um agravante, por se isolar quando é crucial uma articulação sem trepidações com o Congresso e a Federação. Bolsonaro vai na contramão.

A demissão do ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta — bem avaliado pela comunidade técnica da saúde e com alto apoio popular —, executada em momento crítico da epidemia do novo coronavírus, aumentou as dificuldades no relacionamento do Planalto com Congresso e governadores. Elas precisam ser superadas. O que parecia algo distante, verificado no Norte da Itália, começa a ocorrer no Brasil. A tragédia de o sistema de saúde não atender todos os infectados em estado grave já acontece em Manaus, onde há corpos em corredor de hospital. A capacidade de atendimento de doentes graves, nas UTIs, está no seu limite em hospitais de referência no Rio e em São Paulo. Esta pressão poderia ter sido aliviada se Bolsonaro houvesse reforçado os apelos do seu ex-ministro Mandetta pelo isolamento social. Mas estimulou a circulação nas ruas, o que facilita a contaminação e leva mais tarde à corrida a hospitais já superlotados.

Legislativo e Supremo demonstram que sem se obedecer aos princípios do estado democrático de direito os custos do enfrentamento das crises da saúde e econômica será mais alto, em termos sociais e humanos. A Corte acaba de confirmar a limitação da área de ação do Executivo para evitar a desautorização de estados e municípios em políticas prudentes de prevenção. O Congresso tem cumprido sua agenda de crise, examinando propostas emergenciais.