O globo, n. Especial Coronavírus, 20/04/2020. Especial Coronavírus, p. 6

 

Repúdio a Bolsonaro

João Paulo Saconi

Natália Portinari

Adriana Mendes

20/04/2020

 

 

Presença em ato pró ai-5 gera reação de stf, congresso e governadores

 

REUTERS/UESLEI MARCELINODemandas inconstitucionais. Presidente participa de ato em Brasília que pedia o fechamento do Congresso e do STF e nova intervenção militar

A presença do presidente Jair Bolsonaro em um protesto em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília, provocou a reação de Legislativo, Judiciário e governadores. No ato, que foi transmitido ao vivo pelas redes sociais de Bolsonaro, os manifestantes exibiram cartazes e entoaram gritos de ordem para expressar demandas inconstitucionais, como intervenção militar, fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF) e um novo AI-5, ato que marcou o início da fase mais violenta da ditadura militar. Entre os principais pedidos, estava também a retomada de atividades econômicas não essenciais, interrompidas por prefeitos e governadores como forma de combater o avanço do novo coronavírus. A participação de Bolsonaro no ato causou mal estar entre a cúpula militar do governo.

No início da tarde, em meio a gritos de populares que repetiam “AI-5”, Bolsonaro discursou dizendo que não tem mais o que negociar.

— Acabou a época da patifaria. É agora o povo no poder. Mais que direito, vocês têm obrigação de lutar pelo país de vocês. Contem com seu presidente para fazer tudo aquilo que for necessário para manter a nossa democracia e garantir aquilo que é mais sagrado de nós, que é nossa liberdade. Nós não queremos negociar nada, nós queremos é ação pelo Brasil —disse Bolsonaro.

Além dos traços autoritários, o ato descumpriu as medidas de distanciamento social defendidas por especialistas e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), consensuais em quase todo o mundo. Aglomerados e sem vestirmás caras de proteção, apoiadores seguraram faixas em protesto contra ministros do Supremo:

“Ministros, vocês são uma vergonha para o STF e o Brasil. Impeachment de todos já”.

A indignação com o ato apoiado pelo presidente da República ficou explícita em mensagens publicadas nas redes sociais por ministros do Supremo, governadores e parlamentares.

O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), escreveu em sua rede social: “O mundo inteiro está unido contra o coronavírus. No Brasil, temos de lutar contra o corona e o vírus do autoritarismo. É mais trabalhoso, mas venceremos. Em nome da Câmara dos Deputados, repudio todo e qualquer ato que defenda a ditadura, atentando contra a Constituição”.

O ministro Marco Aurélio Mello, do STF, disse que militares observam a disciplina: “Fiz, em 1983, a Escola Superior de Guerra. Conheço os militares. Observam a disciplina, a hierarquia e não apoiam maluquices. Não sei onde o ‘capita’ está com a cabeça! Tempos estranhos! Não há espaço para retrocesso. Os ares são democráticos e assim continuarão. Visão totalitária merece a excomunhão maior. Saudosistas inoportunos. As instituições estão funcionando”.

Luís Roberto Barroso, ministro do STF, publicou duas mensagens no Twitter, nas quais classificou o traço autoritário do movimento como “assustador” e afirmou que “pessoas de bem e que amam o Brasil” não desejam o retorno do estado de exceção vivido entre as décadas de 1960 e 1980.

“É assustador ver manifestações pela volta do regime militar, após 30 anos de democracia. Defender a Constituição e as instituições democráticas faz parte do meu papel e do meu dever. Pior do que o grito dos maus é o silêncio dos bons (Martin Luther King). Só pode desejar intervenção militar quem perdeu a fé no futuro e sonha com um passado que nunca houve. Ditaduras vêm com violência contra os adversários, censura e intolerância. Pessoas de bem e que amam o Brasil não desejam isso”, escreveu Barroso.

O ministro Gilmar Mendes replicou em sua rede social a fala de Barroso e também escreveu uma mensagem: “Invocar o AI-5 e a volta da ditadura é rasgar o compromisso com a Constituição e com a ordem democrática”.

MAL-ESTAR ENTRE MILITARES

Segundo informações do blog do jornalista Gerson Camarotti, no G1, o episódio causou grande mal-estar entre integrantes da ala militar do governo. O blog da jornalista Andréia Sadi também noticiou que a cúpula militar do governo diz, nos bastidores, que não existe qualquer ameaça concreta à democracia porque as Forças Armadas rechaçam a ideia. Generais ouvidos pelo jornal “O Estado de S. Paulo” dizem que Forças Armadas são instituições permanentes, que servem ao Estado brasileiro, e não ao governo.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse, em rede social, que é “lamentável que o PR adira a manifestações antidemocráticas. É hora de união ao redor da Constituição contra toda ameaça à democracia. Ideal que deve unir civis e militares; ricos e pobres”.

NOTA DE GOVERNADORES

Uma nota pública assinada por 20 governadores foi divulgada para defender o Congresso. Adversário político do presidente, o paulista João Doria fez menção direta à atitude de Bolsonaro. “Lamentável que o presidente da República apoie um ato antidemocrático, que afronta a democracia e exalta o AI-5. Repudio também os ataques ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal”.

No Rio, Wilson Witzel disse que Bolsonaro ataca governadores. “Em vez de o presidente incitar a população contra os governadores e comandar uma grande rede de fake news para tentar assassinar nossas reputações, deveria cuidar da saúde dos brasileiros”.

Nota emitida pelo PSDB e assinada por Bruno Araújo, presidente da legenda, diz que “o presidente eleito jurou obedecer à Constituição brasileira” e que “ao apoiar abertamente movimento golpista, coloca em risco a democracia e desmoraliza o cargo que ocupa”.

Também por meio do Twitter, senadores e deputados se manifestaram sobre a presença de Bolsonaro na manifestação. Houve publicações de Randolfe Rodrigues (Rede-AP), líder da oposição no Senado, e dos deputados Marcelo Freixo e Ivan Valente (ambos do PSOL-RJ), entre outros.

O senador Randolfe cobrou atitude do procurador-geral da República: “Agora cabe ao procurador-geral da República, Augusto Aras, abrir processo contra o presidente da República por mais esse atentado ao povo brasileiro”.