Valor econômico, v.20, n.4985, 22/04/2020. Política, p. A8

 

Bolsonaro atropela técnicos em decisões

Daniel Rittner

22/04/2020

 

 

O presidente Jair Bolsonaro se vangloria de ter montado um gabinete de ministros técnicos e sem indicações políticas, mas já coleciona um amplo catálogo de episódios em que decisões políticas se sobrepõem às recomendações técnicas. Usando bordões de fácil entendimento popular, como "taxa do sol" e "indústria da multa", Bolsonaro atropelou pareceres de ministérios e surpreendeu os próprios auxiliares com reviravolta em suas deliberações.

Nos bastidores, assessores presidenciais até se arriscam a apontar um padrão nas guinadas. Bolsonaro geralmente faz essas declarações inesperadas aos fins de semana ou feriados, quando passa menos tempo interagindo com ministros e está mais suscetível à influência dos amigos e dos filhos.

Foi em um sábado de junho, na portaria do Palácio da Alvorada, que o presidente demonstrou irritação com o recém-aprovado projeto de lei geral das agências reguladoras e reclamou de um ponto que supostamente lhe tiraria a prerrogativa de indicar novos diretores. "Pô, querem me deixar como rainha da Inglaterra?", questionou. Dias depois, Bolsonaro vetou esse dispositivo.

Detalhe: jamais um representante de seu governo havia exposto discordância sobre o assunto durante a tramitação no Congresso Nacional, e o Ministério da Economia apoiava o projeto - o atual secretário-executivo da pasta, Marcelo Guaranys, foi um dos "pais" do texto substitutivo, quando era subchefe da Casa Civil, na gestão Michel Temer.

Na verdade, Bolsonaro estava errado: o artigo vetado previa apenas que uma comissão - a ser formada pela própria Presidência da República - se incumbiria de fazer uma pré-seleção de nomes e levar três sugestões ao presidente. Ou seja, ele continuaria sendo responsável por todas as indicações.

Foi também em um sábado que, depois de ler artigo do diretor de relações governamentais da Associação Brasileira de Geração Distribuída, ligou para o autor. Em uma conversa de meia hora, ouviu críticas à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e postou, nas redes sociais, que derrubaria a proposta de revisão das subvenções à geração de energia por placas fotovoltaicas.

Bolsonaro chamou um diretor da Aneel ao gabinete presidencial e passou por cima de parecer da equipe econômica que indicava que, sem mudanças no atual mecanismo, os subsídios cruzados para a produção de energia solar chegarão a R$ 34 bilhões até 2035. "Decidi, ninguém mais conversa. Se conversar, eu demito. É cartão vermelho", ordenou.

Os últimos episódios foram na pandemia de coronavírus, mas não se restringem ao conflito aberto com o ex-ministro Henrique Mandetta (Saúde) em torno de recomendações sobre o isolamento social e a cautela no uso da cloroquina. O ministro Marcos Pontes (Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) fechou acordo com as principais operadoras de telefonia para obter dados de geolocalização de celulares a fim de controlar o fluxos de pessoas. Teve que voltar atrás depois de telefonema de Bolsonaro.

Dias antes, seu filho Eduardo havia atacado o governador de São Paulo, João Doria, pelo uso de um sistema semelhante e insinuado que o tucano violava a privacidade e direitos individuais com o monitoramento. Até mesmo parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) já aprovara o uso da ferramenta.

Para o analista Creomar de Souza, CEO da consultoria de risco político Dharma e professor da Fundação Dom Cabral, Bolsonaro e outros líderes populistas, como o americano Donald Trump e o húngaro Viktor Orbán, tentam dar "respostas simples para perguntas complexas".

"O referencial de decisão certa não é a política pública baseada em evidências, que pode resolver um problema concreto, mas o resultado em termos de apoio popular", observa Souza. Ele acredita que, pelo uso competente das redes sociais, Bolsonaro consegue se comunicar de maneira eficaz com a militância, oferecendo soluções aparentemente fáceis.

"O presidente é um voluntarista da política e sempre está preocupado com as repercussões eleitorais de decisões técnicas do governo", afirma, notando que ele fica suscetível a pressões de grupos de interesse, especialmente categorias com visibilidade e grande força corporativa, como caminhoneiros e taxistas. "No fundo, Bolsonaro nunca se desfez dos hábitos que dão sobrevida a um político tradicional da municipalidade, atua como um prefeito ou vereador nacional."

Até um dos queridinhos de Bolsonaro, o elogiado ministro Tarcísio Freitas (Infraestrutura), já foi surpreendido pelo ímpeto do chefe. O presidente garantiu que não haverá cobrança de pedágio, em Guarulhos (SP), na nova concessão da Via Dutra. A relicitação da estrada previa, na realidade, um sistema de cobrança eletrônica apenas dos carros que trafegam pela via expressa da rodovia nas proximidades de São Paulo.