Valor econômico, v.20, n.4966, 24/03/2020. Finanças, p. C5

 

Entrevista - Mario Torós

Lucinda Pinto

Sergio Lamucci

24/03/2020

 

 

Ainda que qualquer cenário traçado neste momento seja carregado de incertezas e variâncias, já é possível afirmar que a crise deflagrada pela pandemia provocada pelo novo coronavírus tem um impacto mais agudo sobre as economias globais do que a vivida em 2008 e 2009. Para o sócio da Ibiuna Investimentos, Mario Torós, que esteve à frente da diretoria de Política Monetária do Banco Central durante a crise financeira internacional que culminou na quebra do banco Lehman Brothers, é possível esperar que o PIB, tanto de economias centrais quanto das emergentes, tenha o maior tombo no segundo trimestre neste ano da história.

O cenário base da Ibiuna é que as economia centrais tenham uma retração de 5% neste ano. No Brasil, a retração pode ser da ordem de 3%.

Diante desse quadro, os bancos centrais do mundo, inclusive o brasileiro, estão agindo corretamente, tomando uma série de medidas para tentar estabilizar o mercado monetário - injetando recursos no sistema, recomprando dívida, entre outras medidas. Mas, no Brasil, Torós considera que o passo seguinte é dar alívio às condições financeiras, que tornaram-se apertadas com a alta do dólar e dos juros longos e queda da bolsa. E, nesse quesito, o BC tem que fazer mais. “É primordial tentar tomar medidas para mitigar esse aperto das condições financeiras”, afirma.

O ex-diretor do BC defende um programa de atuação no câmbio e também um reforço da ação do Tesouro de recomprar títulos públicos. “Retirar um pouco da volatilidade de câmbio em relação a muitos dos pares já é um benefício no sentido de afrouxar as condições financeiras. Anunciar um programa, mostrando que pode usar diferentes instrumentos, seja o spot, sejam os derivativos, seria bastante importante”, afirma Torós, observando que o uso de programas de intervenção cambial só deve acontecer em momentos excepcionais, como foi 2008 e como é o atual.

Por fim, Torós acredita que o BC poderá ter que voltar a cortar os juros - mensagem que foi, inclusive, ajustada na ata do Copom, divulgada hoje. “A questão é que só haverá reunião do Copom daqui a 40 dias, o que parece uma vida. O Banco Central eventualmente teria que atuar antes disso. Lembrando, esta é uma crise diferente de 2008, muito mais aguda”, afirma.

Veja, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: A bolsa brasileira já caiu mais entre o vale e o pico do que em 2008, e o S&P 500 está perto disso, mas num período mais curto. Essa crise pode ser pior do que foi a de 2008 e 2009?

Mario Torós: Há diferenças e semelhanças. Vamos analisar primeiro a parte da economia. A bolsa na verdade é um reflexo muito do que é a economia, mas ela tem uma característica do ponto de vista macroeconômico muito específica. Ela é muito mais aguda do ponto econômico do que foi a de 2008. Essas são as diferenças. Há uma semelhança/diferença que é importante. Em 2008, um fator de produção, que foi o capital, travou. Um belo dia o capital deixou de circular no mundo. Uma crise de crédito brutal a partir de um sistema que estava superalavancado começa a gerar uma crise que teve as consequências que a gente viu. Trazendo para agora, o que está ocorrendo é que o outro fator de produção é que travou - o trabalho. Simplesmente a sociedade parou de funcionar, algo inédito na história. Isso tem obviamente consequências e riscos para o fator de produção capital também, à medida que pode gerar e já está começando a gerar uma crise de crédito grande. É a primeira coisa que, ao analisar as duas crises e semelhanças e diferenças, é avaliar isso. Em 2008 você começa uma crise travando o fator de produção capital e agora você começa travando o fator de produção trabalho. Em alguma medida, elas são semelhantes, em alguma medida, são diferentes. O fator de produção primordial afetado é diferente. Essa é a primeira observação quando eu comparo os dois momentos.

Com todo o gasto adicional, o juro real de longo prazo dos EUA está negativo; no Brasil, está quase em 5%”

 Valor: Qual o seu cenário para o desempenho das economias no mundo?

Torós: Essa é uma crise muito mais aguda do que foi a de 2008 e 2009, porque afeta diretamente o setor produtivo. O fator de produção trabalho - e portanto todo o setor produtivo - parou e isso gera um efeito cascata. O primeiro efeito é, portanto, agudo. E a velocidade da volta, ninguém sabe ainda. Qualquer previsão que se faça agora estará sempre cercada das palavras incerteza e variância. Mas, dito isso, não é difícil achar um cenário em que a atividade econômica nos países centrais caia algo como 5% no ano. Uma coisa é certa: vamos ter um PIB do segundo trimestre nas economias centrais e também nas emergentes que certamente será o pior da história, desde que se mede o PIB trimestral, muito pior do que em 2008, justamente por ser mais aguda a crise. O que remanesce e qual é a velocidade de volta disso. E cada um faz uma simulação. Mas de fato você pode chegar a ter quedas de PIB nas economias centrais que podem ser da ordem de -5%.

Valor: Já tem gente achando que a recessão pode ser estender por 2021...

Torós: O processo de volta pode ser muito demorado. O exemplo que a gente tem é a China. Apesar de haver diferenças culturais, a China está três meses na frente do Ocidente. O que se vê é que tem uma volta, mas não é uma volta em ‘V’. Isso já dá para saber. A volta é muito mais lenta do que foi a queda abrupta. A grande questão é que está além da política econômica. Diferentemente da crise de 2008, em que a política econômica - a política monetária, a fiscal - dominava, era o fator primordial, aqui não é. Aqui o fator primordial é uma questão de saúde. As políticas econômicas de algum modo estão a reboque do que vai acontecer.

Valor: E para o Brasil?

Torós: Com toda a incerteza que se tem, é razoável dizer que o Brasil pode ter um desempenho negativo no segundo trimestre da ordem de 4% a 5% em relação ao primeiro. Esse é um cenário base, com todas as variantes. Para o ano, depende da velocidade da volta. Certamente é um PIB bastante negativo, caminhando para uma queda de 3%, nessa direção.

Valor: Essas correções de preços de ativos tão brutais indicam em alguma medida que havia bolhas em vários deles, alimentadas por anos de juros ultrabaixos?

Torós: Acho que é uma visão um pouco simplista da situação. A situação é um pouco mais complexa. Os mercados passaram a ter essa nova realidade, de uma capacidade muito maior dos governos fazerem política fiscal, levou a uma nova forma de organização, inclusive do sistema financeiro. Existem questões específicas do sistema financeiro que levam a ter esse tipo de comportamento que há agora. Você diminuiu muito o tamanho do balanço dos bancos e transferiu isso muito para os fundos de investimento, sejam os fundos mútuos, sejam os hedge funds, à medida que a Regra Volcker criou um ambiente regulatório em que os bancos reduziram muito o balanço e estão até um pouco mais protegidos. Você passou tudo para o mercado. O papel de intermediador do banco, que sempre foi muito grande, hoje é muito menor. Isso leva com que o tipo de comportamento numa crise como essa passa a ser diferente - e aí tem um risco financeiro novo, e acho que os BCs e as políticas econômicas vão ter que lidar -, em que se passou muito desse risco para os fundos de investimento. Há outras características específicas que fazem os mercados terem dinâmicas de preços diferentes. Um exemplo são os ‘algotraders’, que não existiam em 2008 e hoje existem muito. Os algoritmos, os traders quantitativos. Isso passou a dar uma dinâmica de mercado que leva a movimentos que são grandes mitigadores de volatilidade em momentos de estabilidade, o que é bom, mas aumentam a volatilidade em momentos de instabilidade. Isso de algum modo impacta o mercado, porque aumenta o risco, aumenta a percepção de risco dos ativos. Isso faz com que a capacidade de tomar posições seja muito menor. Em média, dos ativos que nós operamos aqui no Brasil e também lá fora, o risco deles aumentou nove vezes em um par de semanas. Alguns aumentaram 14 vezes e outros sete, mas em média aumentou nove vezes o risco.

Em média, o risco dos ativos que operamos no Brasil e no exterior subiu 9 vezes em cerca de duas semanas”

 Valor: O que significa exatamente isso?

Torós: Você compra uma ação da Petrobras ou da Apple - e ação é mais do que nove vezes -, o risco que você tem nesse ativo, como você o mede, pelo valor que está em risco, quando você compra um determinado ativo você coloca o seu capital em risco. Esse risco era um a um par de semanas atrás, hoje é nove vezes a mais hoje. É mais arriscado nove vezes comprar um ativo hoje do que há três ou quatro semanas. Em alguns ativos, isso chega a 14, 15 vezes. Isso faz com que as pessoas não possam ter ativos. É uma percepção de risco. É função dos bancos centrais atuar no sentido de mitigar o aumento desse risco, ou você não consegue afrouxar as condições financeiras. Para afrouxar as condições financeiras, a primeira coisa é ser capaz de reduzir a volatilidade.

Valor: A resposta dos bancos centrais está à altura desse cenário?

Torós: Quando você tem uma crise como essa, ou como foi a de 2008, você gera disfuncionalidades do mercado. Todas as medidas que estão sendo dadas vão na direção de restabelecer essa funcionalidade dos mercados. Não é de uma hora para outra que isso acontece, não é linear. E tem uma agenda para isso. A primeira coisa que é preciso restabelecer é a funcionalidade dos mercados monetários. O Fed começou de forma mais incisiva, na quarta-feira passada, a atuar no sentido de restabelecer o mercado monetário, em um movimento que culminou na decisão desta segunda-feira de fazer um programa de compras de ativos sem limites. Ele estava estabelecendo limites de US$ 70 bilhões ao dia, agora está estabelecendo que pode fazer na quantidade que ele quiser. Também adotou medidas de ajuda ao crédito para empresas. E a gente nota que os mercados monetários começam a ganhar funcionalidade. Os ativos começaram a se mover corretamente.

Valor: E no Brasil?

Torós: No Brasil, o Banco Central foi exatamente nessa linha. Ele anunciou as medidas de estabilização nos mercados monetários: ampliou a liquidez no sistema financeiro, via redução de compulsório, criou a possibilidade de fazer operações compromissadas com outros ativos, está estudando possibilidade de fazer compra de carteira de crédito dos bancos. Medidas importantes para deixar os mercados sem grande estresse. Isso não funciona de uma hora para outra, é algo contínuo, e está indo na linha correta. Se é suficiente, não dá para saber agora. É no dia a dia que o Banco Central tem que avaliar e tem que dar mais ou menos liquidez. Por experiência, não adianta fazer tudo de uma vez. Tem que ir fazendo e ir vendo o efeito, vendo qual é o problema. É o que os bancos centrais estão fazendo e o BC aqui começou a fazer.

Valor: E o que mais tem nessa agenda que o Banco Central precisa implementar agora?

Torós: O primeiro item da agenda de mercados financeiros, atuar para dar liquidez, o BC preencheu. Tem que monitorar essa parte da agenda, provavelmente mais coisas serão necessárias. Mas ele preencheu. No Brasil, o próximo item é afrouxar as condições financeiras, que estão muito apertadas. Nesse quesito, eu acho que o BC fez pouco e precisa fazer mais. Apertaram porque a bolsa caiu muito, o câmbio desvalorizou muito e a curva de juros ficou muito inclinada. É primordial tentar tomar medidas para mitigar esse aperto das condições financeiras. Mas eu acho que é necessário fazer mais coisas na linha de afrouxar as condições financeiras. Não só o Banco Central, mas também o Tesouro. Há duas medidas que devem ser feitas na minha opinião. Uma delas é mostrar ao investidor que o Banco Central tem US$ 360 bilhões em reservas, que está disposto a usar e que vai usar da melhor forma. Ao anunciar um programa, não necessariamente o BC vai cumprir o programa, mas vai mostrar que pode dar uma maior estabilidade na taxa de câmbio, sem afetar a trajetória. Retirar um pouco da volatilidade de câmbio em relação a muitos dos pares, já é um benefício no sentido de afrouxar as condições financeiras. Anunciar um programa, mostrando que pode usar diferentes instrumentos, seja o spot, sejam os derivativos, seria bastante importante.

Valor: Qual seria o tamanho adequado desse programa?

Torós: Difícil dizer, mas é possível olhar alguns dados. O déficit do balanço de pagamentos foi de cerca de US$ 26 bilhões este ano. Digamos que seja de US$ 50 bilhões este ano, porque vai ter mais saída de recursos. Além disso, vamos assumir que vá ter uma demanda natural por hedge. Se der a demonstração de que o BC está disposto a suprir demanda adicional por hedge mais o déficit de balanço de pagamentos, isso ajudaria a reduzir a instabilidade do câmbio, sem impactar o nível da taxa.

Valor: Qual a segunda medida?

Torós: Seria uma ação do Tesouro, algo que está sendo bem-sucedido no México e que, aqui, foi feito de forma parcial. É dar liquidez a toda a curva dos papéis públicos. Aqui tem muita demanda e movimentos de fundos, que leva às vezes a liquidações forçadas. Se há um saque muito grande num fundo, isso impacta a cota dos fundos e causa prejuízo grande aos investidores. Eleva incerteza e instabilidade. O próprio Fed e o BCE estão fazendo isso, compras diárias para os diferentes papéis do Tesouro. Nunca é num volume muito alto, mas dá muita tranquilidade para estabilizar a estrutura da curva a termo.

Valor: Sobre a agenda do BC, qual é o terceiro item?

Torós: A Selic. Acho que o Banco Central deixou relativamente claro a intenção dele. O comunicado da decisão do Copom [de cortar os juros em 0,5 ponto percentual, para 3,75%, na última reunião do Copom] foi, a meu ver equivocado ao dizer que essa taxa era adequada para o momento. Ao colocar a discussão toda na ata ficou muito mais claro que o BC irá agir quando julgar que as circunstâncias estiverem requerendo. O BC pode cortar o juro novamente e acho que até o fará, mas disse que quer ter um convicção maior de que a queda do juro se traduzirá em afrouxamento das condições financeiras. A questão é que só haverá reunião do Copom daqui 40 dias, o que parece uma vida. O Banco Central eventualmente teria que atuar antes disso. Lembrando, esta é uma crise diferente de 2008, muito mais aguda. O BC deixou claro na ata que ele quer baixar os juros, mas só quer fazer isso o impacto para as condições financeiras for positivo. Então, a ideia é tomar medidas por um lado para estabilizar as condições financeiras que são os dois primeiros itens da agenda. E então pode atuar, sabendo que o impacto que suas decisões de taxa de juros será positivo sobre as condições financeiras.

Valor: Mas parte da alta dos juros mais longos não tem a ver com as dúvidas sobre o rumo da política fiscal, dada a necessidade de medidas emergenciais?

Torós: A questão fiscal fez a curva inclinar. Como todos sabemos, o espaço fiscal no Brasil é muito mais limitado que dos países centrais. Agora mesmo vi o presidente da Câmara [Rodrigo Maia] dizendo que o decreto de calamidade dá ao Executivo o poder de ter um déficit primário de R$ 200 bilhões, R$ 300 bilhões ou R$ 400 bilhões. A estrutura a termo da juros já reflete isso, o que significa mais aperto nas condições financeiras. Por exemplo, com todo o gasto adicional que os Estados Unidos está usando, o juro real de longo prazo está negativo. No Brasil, estamos voltando para os 5%. Precisa que desenhe?