Valor econômico, v.20, n.4966, 24/03/2020. Brasil, p. A6

 

Reação faz governo recuar de MP que flexibiliza contratos

Fabio Graner

Edna Simão

Marcelo Ribeiro

Renan Truffi

24/03/2020

 

 

O governo Jair Bolsonaro se viu ontem envolvido em mais uma polêmica. Dessa vez foi com a edição de uma medida provisória que flexibiliza as regras trabalhistas para o enfrentamento da crise econômica do coronavírus. O texto publicado em edição extra do “Diário Oficial” prevê a suspensão de contrato de trabalho por até quatro meses, sem necessidade de pagamento de salário pelo empregador ou pelo governo. Com a forte reação contrária, Bolsonaro anunciou que o dispositivo será revogado.

Na realidade, o governo deve editar uma nova MP com proposta semelhante, mas limitada a alguns setores e já prevendo que trabalhadores que aceitarem um acordo de suspensão de contrato receberão do governo federal o seguro-desemprego.

Logo pela manhã, diante da forte repercussão, o secretário-especial de Trabalho e Previdência do ministério da Economia, Bruno Bianco, responsável pela iniciativa, chegou a prometer que a contrapartida do governo seria publicada em outra MP ainda nesta semana. Mas foi atropelado pela decisão de Bolsonaro de revogar o dispositivo. De tarde, Bianco anunciou a reedição da MP de forma mais completa, com uma compensação aos trabalhadores pelo governo.

No Congresso, houve reações fortes do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que chamou a medida de “capenga”, e de deputados como Alessandro Molon (PSB-RJ), líder do seu partido na Câmara, que pediu a devolução da MP. Essa medida poderia ser adotada pelo presidente do Congresso, senador Davi Alcolumbre (DEM-AP). “O grande problema é o governo ter esquecido a parte mais frágil dessa história. A gente é a favor de ajudar as empresas, mas os trabalhadores não terem nenhum apoio”, disse Molon. “O governo tem que editar outra MP que equilibre os dois lados”, acrescentou. O PDT entrou com ação no STF contra a MP.

Apesar de o ministro Paulo Guedes ter afirmado em entrevista a “O Globo” que houve um erro na MP e que seria corrigido, a decisão de deixar de fora a compensação aos trabalhadores ocorreu porque a estratégia era deixar isso para outra MP. Essa nova MP concentraria todas medidas que teriam impacto fiscal, apurou o Valor, porque é necessário incluir a despesa no Orçamento. E isso demanda pedido ao Congresso de abertura de crédito.

O fato é que o desenho do custeio dessa medida ainda não estava pronto. Optou-se então por fazer a MP sem essa parte, sem que se tivesse adequadamente antecipado a repercussão política negativa.

E as críticas dos congressistas foram decisivas para o recuo presidencial. Maia disse que o texto não estava alinhado com o que tinha sido apresentado a ele pela equipe econômica. Após destacar que a MP gerou “pânico” e “criou uma crise desnecessária”, o presidente da Câmara lembrou que o governo federal sinalizou que encaminharia a sugestão de redução de 50% dos salários para quem ganha até dois salários mínimos, o que não aconteceu. “Estou achando que mandaram uma medida provisória capenga. Acho que não dá pra gente construir soluções pontuais a cada momento. Isso vai gerar mais estresse e mais problema”, disse. Com o recuo de Bolsonaro, Maia “tirou o pé” e passou a considerar a possibilidade de a proposta avançar no Congresso. O chefe da Câmara também enfatizou que, “se governo não entender que precisa colocar dinheiro, fica muito difícil”.

Após o movimento do Planalto, a leitura no Congresso era que a temperatura tenderia a baixar. Apesar disso, integrantes da cúpula do Senado ressaltaram ao Valor que Bolsonaro terá de enviar uma nova MP porque ele não poderia, do ponto de vista regimental, revogar um único dispositivo do texto depois que este já foi encaminhado ao Congresso. Há dois caminhos: ou enviar uma nova MP revogando apenas o artigo 18 do texto anterior ou solicitar que Alcolumbre a devolva ao Executivo.

Além da polêmica sobre a suspensão dos contratos de trabalho, a MP flexibiliza uma série de regras trabalhistas, permitindo antecipar férias individuais e coletivas e também feriados, o teletrabalho (“home office”), entre outras medidas que haviam sido antecipadas na semana passada.

Determina que a fiscalização dos auditores do trabalho será “orientadora”, à exceção de casos específicos como trabalho análogo à escravidão, e permite a prorrogação de certidão negativa de débitos da Receita e da PGFN durante o período de duração do estado de calamidade pública.

O sócio para assuntos trabalhistas do escritório Bichara Advogados, Jorge Matsumoto, disse que a MP tem virtudes, como a flexibilização de regras para antecipação de férias, folgas e teletrabalho, mas exagerou na parte em que trata da suspensão do contrato de trabalho, deixando o trabalhador desprotegido. “Precisa ter uma participação do Estado que não está lá previsto”, disse.

Ele afirma que a medida é um “layoff incompleto e desigual”, pois trata do mecanismo estabelecido na reforma trabalhista de 2017 sem as contrapartidas do governo e dos empregadores. Sem isso, explica, é mais vantajoso financeiramente para o trabalhador ser demitido.

Leonardo Echenique, sócio do escritório Mattos Engelberg Advogados, classifica a MP de “bastante temerária”, ao deixar nas mãos dos empregadores a decisão sobre se pagam ou não algum vencimento para os funcionários com contrato suspenso. “É uma medida incompleta, deveria ter pelo menos alguma definição de pagamento mínimo, não pode simplesmente poder não pagar nada”, disse.

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Não calcular impacto político da medida foi grande erro

Claudia Safatle

24/03/2020

 

 

O governo cometeu um grande erro ao publicar, domingo à noite, a Medida Provisória 927, que permitia às empresas suspender contratos de trabalho por quatro meses sem pagar salários. A explicação de uma alta fonte da área econômica foi de que, na pressa, os técnicos que prepararam a MP não avaliaram o impacto político que ela teria ao ser divulgada sem uma outra medida provisória que deveria ser editada de forma simultânea.

O objetivo da MP 927 era o de regulamentar o trabalho em casa ("home office"), que é uma forma de prestação de serviços não reconhecida por lei exceto para casos bem específicos. A segunda MP - que ainda está sendo preparada para regulamentar o "layoff" (interrupção temporária da jornada de trabalho) - é que definirá quem vai pagar, quanto vai pagar e como vai pagar o trabalhador em "home office".

Provavelmente o seguro-desemprego, reforçado com emissão de dinheiro nesses tempos de coronavírus, é que custeará uma parcela do salário. Não está definido, ainda, o quanto (50% ou 75% do valor) e se o empregador terá de assumir parte dessa conta.

Os técnicos estão fazendo cálculos e a nova MP não tem data definida para ser publicada.

"Falta comando", disse uma alta fonte oficial. "Está uma torre de Babel", comentou outro assessor, referindo-se à confusão que foi instalada com a divulgação da MP 927 que era draconiana com o trabalhador, ao deixá-lo sem trabalho e sem salário por quatro meses.

Ontem o presidente Jair Bolsonaro revogou o artigo 18 da MP 927, que previa, como combate aos efeitos da pandemia, a suspensão dos contratos de trabalho por quatro meses sem nenhum tipo de remuneração ao trabalhador. "Determinei a revogação do art.18 da MP 927, que permitia a suspensão do contrato de trabalho por até 4 meses sem salário", escreveu Bolsonaro no Twitter, após a medida ter sido condenada por vários parlamentares. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a qualificou de "capenga".

Uma coisa parece certa, a priori: será muito difícil e extremamente oneroso para todos manter o comércio fechado por mais de 15 dias. Esta é uma medida que terá que ser reavaliada por todos os governadores.

A área econômica sabe que vai ter que rodar a maquininha e imprimir dinheiro para enfrentar a pandemia. Mas acha que conseguirá fazer isso de forma controlada durante a crise do coronavírus.

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Ação pecou ao só mirar empregador, dizem analistas

Bruno Villas Bõas

24/03/2020

 

 

A Medida Provisória (MP) 927, publicada no domingo e que dispõe sobre medidas trabalhistas para enfrentar a crise gerada pelo coronavírus, eleva a resiliência das empresas no curto prazo, dizem especialistas, ao permitir adiar o recolhimento de FGTS, antecipar férias e tornar claras as regras de trabalho remoto.

Para eles, o ponto falho das ações publicadas foi o olhar apenas para o empregador, sem mirar a renda dos trabalhadores. A medida mais polêmica nesse sentido acabou revogada ontem pelo governo federal - a que permitia suspensão de contratos de trabalho por até quatro meses sem pagamento de salários.

O economista e professor José Pastore, da Universidade de São Paulo (USP), avalia que a MP teve o mérito de oferecer medidas capazes de serem implementadas em curto prazo pelas empresas, além de permitir negociações diretas entre empregados e empregadores em parte dos casos.

"A MP é positiva porque estamos diante de um momento de 'guerra' e medidas que permitam ações rápidas são bem-vindas. Essa MP está tornando coisas mais rápidas de serem resolvidas, deixando as negociações diretamente entre empregadores e empregados. Tem muita coisa nesse campo", diz Pastore.

O especialista passou a manhã ao telefone com empresários detalhando as medidas. "Eu não sei qual será a força da crise, por isso não saberia dizer se as mudanças vão salvar empresas e emprego. Se a crise for muito forte, não tem medida que segure empregos e empresas", acrescentou.

O governo deve reeditar nos próximos dias o artigo que prevê a suspensão do contrato de trabalho, incluindo assistência de renda ao trabalhador. Hélio Zylberstajn, professor sênior da FEA/USP e coordenador do projeto Salariometro.org.br, diz que, mesmo que empregadores paguem parte do salário, a suspensão do contrato valerá a pena para empresas.

De acordo com o pesquisador, se a empresa suspender o contrato de trabalho e pagar 68,5% do salário do empregado por quatro meses, o custo será o mesmo de uma demissão. Ele levou em conta nos cálculos um empregado com salário de R$ 2 mil mensais e benefícios de R$ 500. Isso significa que a medida pode ter ampla adesão das empresas, acredita ele.

"Se a empresa mantiver o benefício e pagar até 43,5% dos salário, sai mais barato que demitir. Então, a mensagem é que o governo se precipitou em revogar este artigo da MP. Vamos esperar que inclua na nova MP", diz o economista.

Ele alerta que o governo federal não pode tornar a medida burocrática. O Programa de Proteção ao Emprego (PPE), lançado pelo governo Dilma em 2015 e que previa a redução temporária da jornada de trabalho, com diminuição de até 30% do salário, não teria "emplacado" devido a dificuldades criadas.

"Era complicado fazer a redução com ajuda do governo, porque tinha que provar que não tinha demitido ninguém em um determinado período até a data, não podia ser inadimplente com tributos. Mas na crise, claro, as empresas já haviam deixado de pagar algum imposto, já tinham demitido um pouco", explica.

Fabio Bentes, economista da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), afirma que a entidade havia sugerido ao governo federal medidas semelhantes das anunciadas. No caso da suspensão do contrato de trabalho, porém, havia proposto que os empregados continuassem recebendo alguma renda.

"Propomos que o empregado pudesse sacar o valor do seguro desemprego. Se ganhasse R$ 1.500, receberia o benefício e a empresa complementaria a diferença. Seria um custo dividido entre o setor público e privado", afirmou o economista.

Para ele, sem olhar a manutenção renda, a MP pode gerar um problema maior no consumo. "É preciso manter alguma renda, algum nível de consumo. Sem isso e sem aumento da oferta de crédito, a crise pode ser mais intensa e criaremos um problema ainda maior no futuro", explica Bentes.

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Revogação escancara corrosão da autoridade presidencial 

Maria Cristina Fernandes

24/03/2020

 

 

Isolado dos governadores e do Congresso, em desavença com seu ministro da Saúde e reprovado por seu eleitorado, o presidente Jair Bolsonaro se apega à caneta como a fonte de onde hoje começa e termina seu poder. A revogação do artigo 18 da Medida Provisória 927, que autorizava às empresas suspender por quatro meses o pagamento de salário dos seus trabalhadores, mostrou que, além do apoio, também falha a caneta sobre a qual repousa sua autoridade.

A revogação aconteceu menos de 24 horas antes de a MP ter sido publicada no “Diário Oficial”. Contra o texto se rebelaram o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que o chamou de “capenga”, pelo Presidente do Senado, Davi Alcolumbre, e pela maior parte das lideranças do Congresso, por onde a medida tramitará.

A MP também foi rechaçada pelo Ministério Público do Trabalho (“expõe risco iminente de falta de subsistência”) e pela Associação Nacional dos Juízes do Trabalho (“inconstitucional, inoportuna e desastrosa”). E, finalmente, foi repudiada por nota conjunta das oito centrais sindicais (“cruel e escandalosa”).

A reação mais ensurdecedora, no entanto, estava sendo preparada para o panelaço de ontem à noite. A movimentação, nas redes sociais, indicava que, desde o início dos panelaços, este prometia ser o de maior engajamento, inclusive de ex-eleitores do presidente. O Datafolha mostrou que a maior corrosão na popularidade do presidente se deu no segmento de renda e escolaridade altas, em que Bolsonaro colheu sua melhor votação em 2018.

A suspensão de salário por quatro meses sem compensação iria na contramão das medidas adotadas no mundo inteiro. Na União Europeia, trabalhadores de mais baixos salários vão receber, em média, 80% de seus rendimentos. Nos Estados Unidos, será entregue pelo menos um cheque de US$ 1 mil para cada um deles.

Uma vez decretada a calamidade pública, já se esperava que uma medida provisória viesse a normatizar as relações de trabalho durante a pandemia. O próprio presidente da Câmara disse que o entendimento com o Executivo era de que trabalhadores com rendimentos até dois salários mínimos viessem a ter uma redução de 50% no salário e que o governo entraria com um aporte de R$ 10 bilhões para garantir a folha de pagamento das empresas. Tudo isso, porém, sumiu do texto. Houve um “erro de redação”, explicou um ministro Paulo Guedes acuado, titubeante e tão corroído na sua autoridade quanto o chefe da nação.