Valor econômico, v.20, n.4968, 26/03/2020. Brasil, p. A10

 

Sociedade deve rejeitar isolamento flexível, defende setor de saúde

Beth Koike

26/03/2020

 

 

Mais de 150 representantes ligados à área da saúde, como hospitais, universidades, operadoras de convênio médico, laboratórios, secretaria de Saúde e Banco Mundial, criaram um manifesto criticando a posição daqueles que defendem o fim do isolamento social, que tem por objetivo controlar a pandemia do novo coronavírus, por causa dos impactos que a paralisação vai provocar na economia do país.

Na terça-feira à noite, o presidente Jair Bolsonaro fez um pronunciamento em cadeia nacional defendendo um isolamento apenas para pessoas com mais de 60 anos, pessoas com doenças crônicas e com sintomas da covid-19. Alguns empresários também têm defendido o retorno às atividades. Atualmente, não há um prazo determinado de quando as pessoas devem voltar ao trabalho.

"Manifestações de autoridades públicas, ou de qualquer personalidade, que contrariem essas recomendações não têm qualquer embasamento científico que a sustente e devem ser rejeitadas pela sociedade brasileira. A ciência, a tecnologia, os profissionais bem preparados, a razão e o bom senso, continuam sendo as armas mais eficazes para enfrentarmos as incertezas", diz o manifesto, preparado logo após o pronunciamento de Bolsonaro.

O documento também é uma manifestação em favor da permanência do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que defende o isolamento social.

O manifesto em apoio ao isolamento social tem assinatura de representantes do setor como Paulo Chapchap, presidente do Hospital Sírio-Libanês; o cirurgião Ben-Hur Ferraz Neto, Carlos Gadelha, da Fiocruz; Daniel Coundry, presidente da Amil; José Luiz Egydio Setúbal, do Hospital Infantil Sabará, Francisco Balestrin, da Anahp (reúne os cem maiores hospitais do país), José Seripieri Junior, da QSaúde, e Lígia Bahia, da UFRJ.

O comunicado argumenta ainda que "todo o mundo científico está debatendo sobre a melhor forma de reduzir o impacto econômico e o caos social que o confinamento total, por prazo indeterminado, tem gerado" e que a interrupção abrupta do confinamento atual "coloca em risco a vida de milhares de brasileiros".

Para os médicos Sidney Klajner, presidente do Hospital Albert Einstein, Miriam Dal Bem, do Hospital Sírio-Libanês, e a infectologista Raquel Muarrek, ainda não é possível mensurar com exatidão quando a população poderá retornar as atividades porque a base de dados de testes para detecção do novo coronavírus ainda é pequena e com isso não é possível fazer projeções apuradas.

O Einstein já tem uma base de cerca de 700 exames com resultado positivos para covid-19 que servirão de base para estudos. "Nos próximos dias, teremos uma percepção melhor de quando é um prazo seguro para retornar ao trabalho", disse Klajner.

Segundo Miriam, em São Paulo, considerando o atual cenário, é provável que seja necessário cerca de dois meses de isolamento para que o retorno seja seguro e ainda assim de forma escalonada. No entanto, a infectologista do Sírio pontua que essa projeção pode mudar porque depende de muitos fatores externos como a adesão da população à quarentena.

Klajner considera dois meses um prazo muito elevado, o que levaria o país a uma profunda crise econômica. A infectologista Raquel defende a aplicação de testes para detectar quais populações podem retornar as atividades.

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Flexibilização é ameaça ao sistema, dizem especialistas

Hugo Passarelli

Leila Souza Lima

26/03/2020

 

 

A flexibilização das medidas de isolamento já adotadas no país para conter o avanço do novo coronavírus é vista como prematura e pode levar o sistema de saúde ao colapso, opinam especialistas.

Ao contrário, muitos defendem a necessidade de ampliar as restrições, e um recuo só deveria ocorrer quando houver evidências seguras de que o ritmo de transmissão diminuiu, o que depende de uma ampla testagem da população com suspeita de ter contraído a doença.

Professor da FGV e pesquisador do departamento de saúde global da Harvard, Adriano Massuda disse que uma quarentena mais radical no Brasil é uma medida "para já", principalmente nas regiões mais populosas e naquelas com maior vulnerabilidade social, em que a oferta de leitos e unidades de terapia intensiva é escassa.

"O adiantamento dessa decisão pode precipitar o colapso do sistema de saúde num futuro não muito distante. Todas as lideranças mundiais que usam a ciência para orientar o enfrentamento à pandemia do coronavírus e suas políticas estão agindo dessa forma."

Segundo os especialistas, a decisão está atrelada a informações precisas sobre os grupos ou localidades com maior crescimento de casos. "É preciso mapear em larga escala a população contaminada ou com suspeita de contaminação. Se conseguirmos fazer um 'roteiro dos casos', será mais fácil adotar estratégias pontuais para não desacelerar a atividade de outras pessoas não envolvidas nesse processo", disse André Medici, economista sênior do Banco Mundial e especializado em saúde pública, em seminário on-line do Instituto Fernando Henrique Cardoso.

Apesar de elogiar medidas preventivas adotadas por União, Estados e municípios, o economista lembra que o alcance das políticas públicas brasileiras tem limites. "O problema por aqui é a implementação, que é difícil porque não temos uma máquina totalmente azeitada para fazer isso num país extremamente desigual", afirma.

O Brasil ainda tem um nível baixo de testagem para o coronavírus em proporção à sua população, mesmo com as iniciativas recentes do governo federal para aumentar o número de exames disponíveis. Uma comparação internacional, organizada pela plataforma Our World Data, aponta que, no dia 13 de março, o país não havia feito exames nem em 3 mil pacientes. A Coreia do Sul, um dos casos mais eficientes na contenção do vírus, já realizou 316,6 mil testes para doença - neste caso, os dados são mais recentes, até 20 de março.

"Se a capacidade de teste for limitada, um distanciamento social mais agressivo poderá ser adotado mais cedo. Da mesma forma, mais capacidade de teste ajudaria a informar quando terminar as restrições", disse, por e-mail, Josh Petrie, professor-assistente de pesquisa da Escola de Saúde Pública da Universidade de Michigan.

Segundo Massuda, a radicalização da quarentena, que é uma ação preventiva, deve durar o "tempo adequado" - ou seja, até o momento em que a vigilância epidemiológica, a partir do monitoramento, constatar redução de transmissão do agente infeccioso. A estimativa de um prazo exato, explica, dependeria de uma análise muito sofisticada de modelagem epidemiológica.

"É preciso agir agora para coordenar adequadamente essa resposta e garantir o menor número de pessoas infectadas e com necessidades de internação. Caso contrário, teremos o pior dos dois cenários, um país com um sistema de saúde colapsado e em dificuldades econômicas".

Mesmo que o diagnóstico avance rapidamente, o Brasil pode observar aumento desenfreado da doença e pode chegar um momento em que não importará mais testar e quantificar os infectados e, sim, atender os que precisarem de cuidados intensivos, opina o consultor técnico da Sociedade Brasileira de Infectologia Hélio Bacha.

"É claro que o Brasil tem diferenças regionais, e ainda podemos fazer um desenho melhor da pandemia", disse Bacha. "Mas haverá certamente um grande número de casos não registrados com a invasão do agente infeccioso pelo país, sobretudo em áreas pobres."

Medici, do Banco Mundial, esclarece que os níveis de letalidade da doença aumentam conforme o sistema de saúde de país se aproxime do esgotamento. "Existe um determinado limite dos sistemas de saúde [de todo o mundo] para atender as internações, por isso tem de achatar a curva de infecção", afirma. Isso explica porque na Itália a proporção de mortos com mais de 80 anos é bastante superior à da Coreia do Sul: 20,2% contra 9,3%.

Defendida pelo presidente Jair Bolsonaro, a retomada da livre circulação da população é um tema ainda preliminar mesmo nos EUA, fonte de inspiração para o posicionamento político do líder brasileiro. "O debate sobre a possibilidade de relaxar as regras de bloqueio está crescendo apenas em certos círculos americanos, principalmente conservadores, muito para tentar racionalizar os comentários aparentemente erráticos do presidente Donald Trump sobre o assunto", afirmou Paolo Pasquariello, professor da Escola de Negócios Ross, da Universidade de Michigan.

Não há precedentes em outros países de encurtamento da quarentena, aponta Pasquariello. "A única exceção é Hong Kong, onde o sucesso precoce na luta contra o vírus levou as autoridades a relaxar algumas restrições. Infelizmente, pouco depois, a taxa de contágio começou a aumentar."

Origem da doença, a China começou a permitir algum movimento na região de Hubei, onde Wuhan está localizada, mas ainda não está relaxando seu controle geral da população local. "A China, no entanto, não é um bom exemplo, pois sua vasta economia pode permitir um bloqueio regional total, mantendo grande parte do sistema industrial funcionando", afirma Pasquariello.