O Globo, n. 95, 22/03/2020. Economia, p. 28

 

Entrevista - Alexandre Schwartsman: "Haverá uma recessão global, e nenhum país está imune"

Alexandre Schwartsman

22/03/2020

 

 

Para enfrentar uma situação sem precedentes nos últimos cem anos, ex-diretor do BC defende mais corte de juros e aumento de despesas, mas manutenção do teto de gastos

 Alexandre Schwartsman acredita que a situação que o planeta enfrenta neste momento impõe aos governos a adoção de todas as medidas que possam garantir, em primeiro lugar, a saúde da população e, na sequência, a saúde da economia.

Para isso, o ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central (2003-2006) defende postura mais agressiva da equipe econômica: cortes maiores da taxa de juros e aumento dos gastos orçamentários, mas sem alterar a regra do teto de gastos (que limita o crescimento das despesas).

Para o economista, que dirige atualmente uma consultoria, a recessão global em 2020 é um fato, e nenhum país conseguirá se livrar disso. Pelas contas mais recentes de Schwartsman, a economia brasileira deve encolher ao menos 2,5% no ano do coronavírus.

‘HAVERÁ UMA RECESSÃO GLOBAL, E NENHUM PAÍS ESTÁ IMUNE’

“Deixamos o importante para depois e agora estamos nessa situação. Passada a fase aguda da crise, essas reformas que não aprovamos vão fazer muita falta”

O ministro Paulo Guedes lançou um pacote de medidas econômicas com dois objetivos: ajudar os mais vulneráveis e manter os empregos. O dinheiro anunciado é suficiente?

Os R$ 147 bilhões anunciados na segunda-feira têm muito pouco dinheiro novo. Cerca de metade é antecipação de gastos que seriam feitos no segundo semestre de qualquer maneira. As duas parcelas do 13º salário dos aposentados, por exemplo, teriam que ser pagas por volta de setembro e depois no fim do ano. Fora isso, não diria que o dinheiro para os aposentados deveria ser o principal foco agora. Eles têm uma fonte de renda que não se altera com os problemas que estamos vivendo. O dinheiro deles está garantido. O mais interessante foi anunciado pelo governo na quarta-feira. São os cerca de R$ 15 bilhões para auxiliar as pessoas que estão fora do mercado formal de trabalho. Essas são as pessoas mais vulneráveis. Elas não têm direito a seguro-desemprego. Falo de trabalhadores como os motoristas do Uber. São pessoas que, se pararem de trabalhar, estarão totalmente desamparadas.

A quantia anunciada para os mais vulneráveis é adequada?

Não temos uma resposta para isso hoje. A resposta depende de variáveis que não conseguimos estimar. Não está claro se o Brasil vai tentar mitigar a propagação do coronavírus, fechando algumas coisas, ou se vai fechar tudo na tentativa de suprimir o contágio, como fez a Itália. O governo não mandou fechar tudo. Caso as coisas voltem a funcionar em algumas semanas ou em poucos meses, talvez os R$ 15 bilhões sejam suficientes. Temos que monitorar a situação.

A decisão do governo de postergar o pagamento de impostos das empresas ajuda no sentido de manter os empregos?

É parte da solução. O pacote do governo também permite corte de até 50% da jornada e dos salários dos trabalhadores formais. Mas temos que pensar em outras medidas para segurar as empresas. Muitas não vão aguentar dois ou três meses paradas.

Qual é o tamanho do desafio?

Estamos vivendo o maior desafio do ponto de vista da saúde e da economia dos últimos cem anos. A sensação é que estamos voltando para o século XIX. Nunca experimentamos nada remotamente parecido. Hoje temos certeza de que haverá uma recessão global, e nenhum país está imune. Ninguém pode ajudar ninguém. Pelos meus cálculos preliminares, o PIB brasileiro deve encolher 2,5% este ano. Mas que fique claro: nossa preocupação maior deve ser a saúde. O foco deve ser tomar os cuidados para salvar o maior número de vidas possível. Em segundo lugar, vem a economia. Nem o período da gripe espanhola, em 1918, nem o da Grande Depressão, a partir de 1929, parecem ter apresentado essa combinação de forma tão severa.

Qual a sua avaliação sobre a decisão do BC de baixar a Selic, a taxa básica de juros da economia, para 3,75% esta semana?

O BC poderia ter baixado mais. Não acho que está nem remotamente adequado. Mesmo com o dólar indo a R$ 5 ou mais um pouco, não temos pressões inflacionárias. Este ano a inflação deve fechar abaixo de 3%. Podemos baixar a Selic para 3% ou menos ainda. Se for preciso, lá na frente, a gente aumenta de novo. Alguns argumentam que temos que nos preocupar com a inflação de 2021, mas meu ponto é que o ano que vem ainda está longe. O que está tirando meu sono não é a inflação de 2021. Baixar o juro agora não afeta o regime de metas, que obviamente eu sempre defendi.

Baixar mais os juros terá algum efeito neste momento em que as pessoas estão cada vez mais em casa e as lojas fechando?

Em algum momento, vamos sair de casa e as lojas vão reabrir. E temos que incentivar as pessoas a voltar a consumir. Temos que usar todas as alavancas que temos para tentar estimular a demanda. Isso sem falar na necessidade de fazer as coisas andarem também no lado dos investimentos.

O que mais o BC poderia fazer para proteger famílias e empresas?

Teremos que ver o governo fazer um pouco do que os americanos chamam de moral suasion (a tentativa de forçar empresas a adotarem certas medidas mesmo que a lei não as obrigue). O governo vai ter que chamar os cinco maiores bancos, que estão capitalizados, e dizer que eles não poderão travar a concessão de crédito. Claro que o BC terá que dar apoio. O governo pode dizer que, se os bancos tiverem problemas lá na frente, haverá ajuda. Sempre falamos da concentração bancária como um problema. Agora pode nos ajudar. Uma outra alternativa é fazer com que o Fundo Garantidor de Crédito, uma entidade privada mantida pelos bancos, compre carteiras de crédito. Claro que é preciso cuidado para não incentivar abusos. Nosso desafio é manter a economia enquanto as pessoas estiverem em casa. E crédito é fundamental.

O senhor é a favor de ampliar o déficit fiscal para 2020?

Sim. Mas isso é totalmente diferente de defender a eliminação do limite do teto de gastos, que restringe o crescimento das despesas públicas. Mais do que nunca temos que manter o teto. A própria legislação permite que o governo não cumpra o limite em casos extremos, como os de calamidade pública, que o Congresso acabou de dar aval. Então, o governo poderá exceder o teto este ano, sem problema. Estamos vivendo uma situação excepcional. Uma coisa é gastar a mais este ano. Outra é jogar fora a lei do teto de gastos e perder a disciplina fiscal. Em algum momento, em 2021 ou 2022, o país vai ter que voltar ao limite até para evitar uma crise de dívida soberana. É difícil prever os próximos meses. É menos difícil olhar os próximos anos.

A aprovação de reformas, como a PEC Emergencial e a administrativa, não ajudaria as contas públicas?

Não vejo essas reformas serem aprovadas. O país e o Congresso estão parando. O governo Bolsonaro perdeu muito tempo com as prioridades erradas. Falo de coisas como prorrogar carteira de motorista, porte de armas... Deixamos o importante para depois e agora estamos nessa situação. Passada a fase aguda da crise, essas reformas que não aprovamos vão fazer muita falta.

O senhor não acredita que a crise do coronavírus vai fazer o presidente Jair Bolsonaro mudar de estratégia e de prioridades?

O presidente Bolsonaro não tem capacidade psicológica nem intelectual para entender o tamanho do desafio que estamos vivendo. A vida dele foi toda baseada no enfrentamento. Desde o começo do mandato, ele teve várias oportunidades para mudar de comportamento, mas não mudou. Não consigo vê-lo adotando uma postura que ajude a passar as reformas. Ele ainda acredita que é “o cara”. Mas o apoio popular dele está menor e vai decrescer ainda mais. O risco é termos um presidente cada vez mais antagonista e descolado da realidade.