Valor econômico, v.20, n.4957, 11/03/2020. Finanças, p. C6

 

Coronavírus pode levar à guerra cambial

Robin Harding

11/03/2020

 

 

O mundo teve mais de uma década, desde a crise financeira de 2008, para se preparar para outra recessão global. E não usou bem esse tempo. Agora, um grande choque chegou, na forma da epidemia de coronavírus, no momento em que as maiores economias do mundo encontram-se divididas por disputas comerciais. Uma resposta política não coordenada que prolongue a fraqueza econômica e desencadeie uma nova rodada de guerras cambiais é um perigo real.

Muito ainda não se sabe sobre a doença conhecida como covid-19. O que se sabe, porém, sugere que a única resposta eficaz uma vez que ela se instala é um esforço total de quarentena, como o realizado pela China e agora pela Itália. O resultado inevitável é um grande choque econômico global. A propagação da doença, inclusive nos Estados Unidos, contribuiu para uma queda dramática nos preços das ações globais e rendimentos dos bônus nos últimos dias.

Num mundo ideal, cada banco central deveria enfrentar esse desafio com um nível saudável de inflação e taxas de juros acima de 5%. Se o covid-19 afetar a demanda doméstica, eles cortariam os juros conforme necessário. Governos forneceriam ajuda fiscal orientada. Poderia haver algumas oscilações cambiais, dependendo dos países que fossem mais duramente afetados, mas haveria poucos motivos para uma tensão econômica global.

Infelizmente, não nos encontramos nessa situação. Em grandes partes do mundo rico, especialmente a zona do euro e o Japão, as taxas de juros estão abaixo de zero e o uso de outras ferramentas de alívio, como as compras de ativos, se encontra perto do limite. Nos EUA, as taxas de juros começaram esta crise na faixa de 1,5% a 1,75%, mas já houve um corte de 0,50 ponto percentual. Países como o México, com taxas de juros em 7%, e Rússia, com 6%, têm mais espaço para manobras.

Essa assimetria é uma receita para o que o ex-ministro da Fazenda do Brasil Guido Mantega chamou de "guerras cambiais": não uma manipulação aberta do câmbio em busca de vantagens competitivas, e sim divergências na política monetária que levam a grandes movimentações do câmbio e a ameaças de retaliação da parte daqueles que saem perdendo.

Se o Federal Reserve (Fed, o banco central americano), corta os juros quando o Banco Central Europeu (BCE) e o Banco do Japão não podem fazer o mesmo, o dólar provavelmente vai perder força em relação ao euro e o iene. O corte emergencial do Fed na semana passada e a posterior fuga dos ativos de risco levaram a moeda japonesa a 101 ienes por dólar a certa altura. Níveis em torno dos 100 ienes prejudicam as exportações japonesas e já levaram a ameaças de intervenção cambial no passado. O iene poderia facilmente ganhar mais força se os EUA cortarem sua taxa referencial de juro para zero. O euro encontra-se no mesmo barco.

O espaço do Fed para mais cortes também está limitado e embora o dólar esteja caindo em relação ao iene, ele está subindo em relação ao rublo russo, o peso mexicano, a rupia indiana e outras moedas, especialmente aquelas afetadas pela decisão da Arábia Saudita de produzir mais petróleo e a resultante queda nos preços desta commodity. Pelo menos por enquanto, parece que a crise do coronavírus está levando a um voo para a segurança nos EUA, em vez de uma fuga de capital para mercados emergentes de retornos maiores, como aconteceu em 2010.

A questão crucial é o que o presidente dos EUA, Donald Trump, vai fazer disso tudo num ano eleitoral em que a economia americana se encontra sob pressão. Será que ele vai tolerar a desvalorização cambial em uma série de parceiros comerciais dos EUA? Não parece. Trump poderia muito bem recorrer a intervenção no câmbio ou tarifas punitivas em algum momento em 2020, se ele achar que os parceiros comerciais dos EUA estão ganhando alguma vantagem. A cooperação econômica global já se encontra fragilizada; cada uma dessas duas medidas provocaria uma ruptura completa.

Com a política monetária restrita, a alternativa é a política fiscal. Mas os países também diferem em sua disposição de tolerar déficits. A zona do euro, e a Alemanha em particular, geralmente reluta em gastar mais. Desse modo, a política fiscal também carrega muito potencial de tensão internacional. Imagine que o Reino Unido promova um grande estímulo fiscal em resposta ao coronavírus, mas a União Europeia não faça isso. As exportações europeias poderiam se beneficiar da demanda do Reino Unido.

A única resposta é a cooperação global. Japão e zona do euro podem não ser capazes de cortar seus juros para acompanhar o Fed, mas o afrouxamento nos EUA deveria ser feito com eles, e não contra eles. Jerome Powell, o presidente do Fed, se esforçou muito para agir junto com os bancos centrais dos países do G-7, antes do corte dos juros na semana passada. Mesmo que seus esforços não resultem em cortes coordenados das taxas de juros, ainda é fundamental que a unidade dos bancos centrais seja mantida. O Fed deveria aumentar as linhas de swap cambial com outros bancos centrais para ajudá-los a atender a demanda por dólares se a liquidez local ficar apertada.

O G-20 também terá de se apresentar. Ele deveria exortar seus membros a lançar estímulos fiscais orientados, fornecendo dinheiro para os trabalhadores que não o podem ganhar porque seus filhos foram enviados para casa em razão do fechamento das escolas, e as empresas ameaçadas de insolvência em razão de uma perda súbita da demanda. Quanto mais cada país agir para apoiar sua própria economia, em vez de tentar buscar uma saída com as exportações aproveitando a demanda de outras nações, menos atrito haverá.

Embora o cenário esteja ficando mais sombrio, ainda há algum motivo para esperança econômica. Ao contrário da crise do subprime de 2008, o choque não está vindo do setor financeiro, de modo que ele é menos desestabilizador e há mais chances de uma recuperação rápida. Mas há apenas uma maneira de se conseguir isso: na economia, assim como na luta direta contra a doença, o mundo terá de trabalhar unido.