Correio braziliense, n. 20757, 22/03/2020. Política, p. 3

 

Pandemia "derrete" agenda do governo

Luiz Calcagno

Augusto Fernandes

22/03/2020

 

 

A agenda do governo no Congresso derreteu. E as últimas gotas escorreram no panelaço da última quarta-feira, quando ficou evidente, também, o forte desgaste de Jair Bolsonaro junto à população. Tal condição somete foi possível porque a usina de crises do Palácio do Planalto forneceu a temperatura adequada para a fundição, conforme avaliam políticos e especialistas questionados sobre a relação do presidente com o Poder Legislativo. A expectativa é de que, para tramitar, qualquer pauta reformista do governo — em especial as econômicas –– que seja do interesse dos parlamentares, se descole dos ministros.

Após convocar manifestações em apoio a si mesmo e tratar a pandemia do coronavírus como uma “guerra de poder” e uma “histeria”, restou a Bolsonaro poucos pontos de contato com os congressistas. Essa relação agora existe, somente, em decorrência da pandemia, e é difícil afirmar o quanto desse relacionamento há de se restabelecer. O vice-líder do bloco parlamentar PL, PP, PSD, MDB, DEM, Solidariedade, PTB, Pros, Avante e Patriota, deputado Marcelo Ramos (PL-AM), é duro ao falar sobre o presidente.
“Acho que já estava claro, e esse episódio do coronavírus consolidou, que o Bolsonaro está longe de ter o tamanho da Presidência da República. Ele é muito menor. No momento que mais precisamos de um líder para unir e conduzir, ele divide, jogando com o setor radical, e deseduca, verbalizando uma orientação contrária à do Ministério da Saúde. Em relação a uma pauta do governo, antes da crise eu já dizia que o ano caminhava para ser dado como perdido. Agora, do ponto de vista econômico, isso se consolida. Espero que para as medidas emergenciais, relativas à pandemia, o governo não seja lento e efetivamente encaminhe as MPs e projetos para que a Câmara possa resolver, já que estamos dando respostas rápidas”, ressaltou.
Ramos destaca o panelaço como o maior dos sintomas do isolamento do presidente. E diz que o ministro da Economia, Paulo Guedes, precisa parar de pensar em macroeconomia e focar nas reformas microeconômicas para lidar com o momento do país.
Por outro lado, há quem diga que é possível apaziguar os ânimos. O deputado Hildo Rocha (MDB-MA) destaca que, no último ano, o Congresso sempre esteve “muito disposto a ajudar o governo”, e que “a grande maioria trabalhou no sentido de apoiar as propostas do presidente”. “A relação sempre foi de muito respeito. Agora, acredito que melhora um pouco porque a situação faz com que a gente se una. Todos pensam em um só objetivo, que é evitar o mal maior dessa pandemia: a morte de pessoas em função do vírus”, garante.
Exercício de paciência
No Senado, somente o coro contra a crise do coronavírus salva Bolsonaro. Ainda assim, parlamentares avisam que vão acompanhar de perto as ações do governo. “Estamos em uma quadra de incertezas, de comoção mundial. Ninguém pode politizar este momento, mas nós não podemos deixar de lado o papel fundamental do Congresso Nacional, que é de fiscalização e controle. Neste instante de pandemia, de medo e de dor, estamos todos juntos, inclusive para fiscalizar, a fim de que injustiças não possam ser cometidas no nosso país”, frisa a líder do Cidadania no Senado, Eliziane Gama (MA), que pediu o monitoramento, por parte do Legislativo, de como o governo federal vai utilizar os recursos no combate à pandemia.
Para o líder do PSD no Senado, Ângelo Coronel (BA), é difícil afirmar se a boa vontade do parlamento com o governo continuará quando a crise tiver fim. Os episódios que antecederam a infestação pelo novo coronavírus, como a manifestação do último domingo, em que o parlamento foi alvo das principais críticas dos apoiadores do presidente, ainda incomodam.
“Os financiadores de robôs e os fanáticos das redes sociais deveriam acordar e ver que, sem o apoio do Congresso Nacional, todos os governantes estão fadados ao fracasso”, destacou o senador.
Também prejudicou, na avaliação do parlamentar, o ataque do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), que culpou a China pela proliferação do novo agente infeccioso. “O governo, parentes e alguns dos seus membros precisam acabar com essa prática de falar mal pela manhã e pedir desculpas à noite. Só gera confusão, descrédito e fomento ao ódio”, alerta.
“Os financiadores de robôs e os fanáticos das redes sociais deveriam acordar e ver que, sem o apoio do Congresso Nacional, todos os governantes estão fadados ao fracasso”
Senador Angelo Coronel, que tem dúvidas se, depois de passada a crise, haverá espaço para a construção de diálogo entre Executivo e Legislativo

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Histórico de perdas em 15 meses

22/03/2020

 

 

O cientista político e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) Geraldo Tadeu Monteiro avalia que Jair Bolsonaro já trabalhava com bases estreitas mesmo entre os eleitores, já que muitos de seus apoiadores eram, na verdade, contrários ao então candidato do PT na eleição de 2018, Fernando Haddad. Lembra ainda que o presidente escolheu não se relacionar com o Congresso.
“Ele tinha uma base frágil, um partido com 52 deputados e dois senadores em um universo de 513. Deliberadamente, sob pretexto de fazer política diferente, Bolsonaro não fez política nenhuma. Não articulou base, não chamou partidos para conversar, não estabeleceu diretrizes, não exerceu liderança. E a base foi se fraturando”, enumera.
O passo seguinte do presidente foi prejudicar o PSL, legenda pela qual se elegeu, e tentar criar o próprio partido, o Aliança pelo Brasil. “Ele próprio foi sabotando o pouco de base que tinha. Criou atritos com Rodrigo Maia, Davi Alcolumbre, o Supremo Tribunal Federal. Tivemos falas contundentes do ministro Celso de Mello quando o Bolsonaro fez as convocações para as manifestações”, salienta. “O presidente não consegue entregar o que prometeu. O PIB de 2019 foi decepcionante. Ele demonstra má vontade e incapacidade de perceber, de reagir ao que está acontecendo, e quem governa são os ministros Paulo Guedes, Luiz Henrique Mandetta e Sergio Moro”, critica.
Sobre as pautas, Geraldo Tadeu avalia que só caminhará o que os líderes do Congresso assumirem como deles. “Não serão necessariamente propostas do governo. Será o que o Congresso decidir. Porque o presidente não tem articulação política, não tem projeto, rompe acordo e não é capaz de dar diretriz. Não dá para colocar um general de pijama para lidar com os parlamentares. Tem que ser alguém do ramo. Se a coisa só complicar, vai chegar um momento em que as pessoas vão querer se livrar de Bolsonaro”, alerta.
Última chance
Mestre em Relações Internacionais e professor da faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Brasília (UnB), Aninho Mucundramo Irachande destaca que Bolsonaro chegou ao poder ao lado de parlamentares dispostos a fazer reformas antigas e necessárias. Uma predisposição que, segundo ele, não se via desde o governo Lula. Apesar disso, com a falta de articulação e os últimos ataques ao Congresso, considera que o presidente pode ter perdido a última oportunidade de trabalhar ao lado dos parlamentares. “O pouco diálogo que poderia existir, o próprio governo se encarrega de destruir, a partir de declarações do presidente, ausência de ação e trapalhadas”, lamenta.
E completa: “Todo dia, o presidente mostra uma fragilidade e uma postura antidemocrática, anti-poderes constituídos. E o coronavírus foi um dos momentos mais indignantes. Principalmente porque, na semana anterior, já havia desgaste por apoiar a manifestação. Fez três declarações contraditórias, o que tem um peso muito grande na política. Mandou mensagens convocando, recomendou as pessoas a não irem, e foi. Ou enganou todo mundo com discurso vazio, ou é bipolar. As manifestações nem foram tão acintosas assim, e ele ainda apareceu, mesmo em isolamento. Foi a gota d’água”, sentencia.