O globo, n.31634, 17/03/2020. Especial Coronavírus, p. 4

 

Bolsonaro cita 'histeria' e poderes reagem

Thais Arbex

Daniel Gullino

Leandro Prazeres

17/03/2020

 

 

O presidente Jair Bolsonaro voltou a minimizar a importância da pandemia mundial do coronavírus, chamando a reação a ela de “histeria’’. Em resposta, os presidentes do STF, Dias Toffoli, da Câmara, Rodrigo Maia, edo Senado, Davi Alcolumbre, reuniram-se com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, sem a presença de Bolsonaro, que anunciou a criação de um gabinete de crise com 15 ministros. Governadores de estado adotaram medidas drásticas. Na França, o presidente Macron proibiu deslocamentos. Até o presidente dos EUA, Donald Trump, pediu que se evitem reuniões de grupos de mais de dez pessoas.

“Se eu me contaminei, isso é responsabilidade minha. Ninguém tem nada a ver com isso” Jair Bolsonaro

“Meu governo recomenda a todos os americanos que evitem se reunir em grupos de mais de dez pessoas” Donald Trump

Depois que o presidente Jair Bolsonaro decidiu participar das manifestações que tiveram o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) como alvos, os chefes do Legislativo e do Judiciário se reuniram ontem para debater a crise do novo coronavírus com o objetivo de dar um recado ao titular do Palácio do Planalto. Os presidentes do STF, Dias Toffoli, do Senado, Davi Alcolumbre (DEMAP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), costuraram o encontro com o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, no salão nobre da Corte com um objetivo: o de que ele simbolizasse um contraponto ao que foi classificado, nos bastidores, como “ato tresloucado” de Bolsonaro.

Um dia depois de descumprir restrições médicas, o presidente da República voltou ontem a minimizar a pandemia, afirmando que a cise do coronavírus está “superdimensionada” e que está “havendo uma histeria”. Ainda assim, um decreto de Bolsonaro, publicado em edição extra do Diário Oficial na noite de ontem, criou um gabinete de crise para o combate ao coronavírus.São15ministrosnogrupo, entre eles Paulo Guedes (Economia), Sergio Moro (Justiça) e Henrique Mandetta (Saúde). Houve um primeiro encontro ontem à noite e o comitê voltará a se reunir hoje.

A reunião entre Toffoli, Maia e Alcolumbre, foi articulada durante o domingo, assim que Bolsonaro começou a usar suas redes sociais para divulgar os protestos pelo país. Toffoli, que estava no Marrocos, antecipou seu retorno ao Brasil. Sua assessoria informou que não havia necessidade de isolamento por aquele país não ter casos de transmissão local do vírus e o presidente do STF não apresentar quaisquer sintomas.

Segundo relatos feitos ao GLOBO, o objetivo de fazer um gesto político com o encontro foi crescendo com o decorrer dos acontecimentos

— principalmente quando Bolsonaro rompeu os diversos protocolos recomendados pelo Ministério da Saúde.

O clima ficou pior quando o presidente declarou haver “histeria” sobre o novo coronavírus e descrever o tema como “superdimensionado”. Pesou ainda a reação de Bolsonaro às críticas por seu comportamento. Ele classificou de “hipocrisia” a preocupação manifestada pelas autoridades pelo fato de muitos deles terem participado de um evento em São Paulo com 1,3 mil pessoas na semana passada.

—Seria um golpe isolar chefe do Executivo, por interesses outros que não republicanos — disse Bolsonaro à Rádio Bandeirantes. — Tenho obrigação moral de saudar o povo que ficou na frente do Palácio. Se eu me contaminei, é responsabilidade minha. Agora, tudo continua funcionando no Brasil. Está havendo uma histeria —complementou.

A avaliação foi a de que, no momento em que o presidente decide acirrar o clima entre os três Poderes e minimizar a pandemia, Legislativo e Judiciário precisariam fazer um gesto à sociedade, mostrando união e busca de soluções. Assim, uma reunião que deveria ser apenas entre o vice-presidente do STF, Luiz Fux, e o ministro Mandetta se transformou em um encontro de Poderes, sem Bolsonaro, servindocomoumgestodeisolamento do presidente.

A decisão do STF de manter as sessões, restringindo a circulação no tribunal, tem também um aspecto político. A cúpula da corte compartilha da avaliação dos chefes do Congresso de que, neste momento, fechar as portas dos Poderes pode gerar ainda mais pânico na sociedade. Magistrados e parlamentares concordam que o Legislativo e o Judiciário têm de manter a vigilância — independentemente dos arroubos do presidente da República.

O GLOBO apurou que, apesar da tentativa de serenidade na frente das câmeras, nos bastidores, os chefes dos Poderes têm demonstrado profundo incômodo com os recentes gestos de Bolsonaro. A ordem, no entanto, é segurar os ânimos e não partir para o confronto. Indagado sobre a ausência de Bolsonaro, Toffoli disse que o Executivo estava representado por Mandetta.

A postura de Bolsonaro durante as manifestações de domingo foi criticada porque ele teve contato com pessoas que testaram positivo para o novo coronavírus. Ao todo, 13 participantes de reunião com o presidente nos EUA estão infectadas.

FRONTEIRAS ABERTAS

Questionado ontem sobre o assunto após a reunião no STF, Mandetta se esquivou.

— Vocês estão todos focando e apontando ali. Eu acho que o presidente teve sua passagem que vocês podem questionar. Agora, a praia estava superlotada no Rio. Os bares do Leblon que eu conheço... Tenho amigos que mandaram fotos brindando (de lá) —rebateu.

O ministro disse acreditar que não é o momento de fechar fronteiras para evitar o aumento de casos da doença:

—Se for para partir, primeiro vamos fechar tudo, trancar todo mundo. Sair todo mundo correndo... Não! Calma. Primeiro a gente tem que saber se o tráfego de aeronaves é um componente de formação (de novos casos).

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Até aliados fazem críticas à quebra de regras

Guilherme Caetano

17/03/2020

 

 

Ao ignorar recomendações médicas e comparecer aos atos de domingo, inclusive cumprimentando dezenas de eleitores, Bolsonaro não recebeu críticas apenas de especialistas e adversários, mas também de alguns aliados, no campo da política e da religião. Apoiadores de sua campanha a presidente, como a deputada estadual Janaina Paschoal (PSL-SP), discordaram publicamente do gesto.

Autora do pedido de impeachment da presidente

Dilma Rousseff junto com o jurista Miguel Reale — outro crítico de Bolsonaro ontem —, Janaina fez o discurso mais duro. Na tribuna da Assembleia Legislativa de São Paulo, ela defendeu que Bolsonaro se afaste do cargo para que o governo federal esteja mais comprometido com o combate à crise sanitária.

— O que o presidente fez ontem é inadmissível, injustificável, indefensável. É crime contra a saúde pública. Desrespeitou o seu ministro da Saúde. Esse senhor tem que sair da presidência da República. Deixa o Mourão,

que é treinado para a defesa, conduzir a nação. O nosso país está entrando numa guerra contra um inimigo invisível — declarou ela, que chegou a ser convidada para a vice de Bolsonaro nas eleições de 2018. — Como um homem que está possivelmente infectado vai para o meio da multidão? Eu me arrependi do meu voto.

Um dos mais fieis aliados do presidente também disse discordar de seu ato. O pastor Silas Malafaia, da Assembleia Deus Vitória em Cristo, também criticou o presidente:

— Não vou ser hipócrita porque sou aliado do presidente. Eu acho que ele (Bolsonaro) não devia ter feito aquilo. Não aperto mais a mão de gente na minha igreja. Não achei producente essa atitude. Mas não vou crucificar. Eu discordo dele apertar a mão dos outros — afirmou Malafaia.

Agora rival político do presidente, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que no próprio domingo havia atacado a conduta de Bolsonaro, ontem subiu o tom e disse que o presidente deu um “mau exemplo de cidadão e de chefe da nação”.

— Foi uma participação inadequada. Eu lamento como brasileiro e como governador de São Paulo que o presidente do meu país não tenha sensibilidade em uma hora tão difícil — afirmou, em entrevista coletiva.

O ex-ministro Miguel Reale Júnior disse ao “Estado de S. Paulo” que o presidente deveria se submeter a um teste de sanidade mental.

— Seria o caso de submetê-lo a uma junta médica para saber onde o está o juízo dele. O MP pode requerer um exame de sanidade mental para o exercício da profissão. Assumir o risco de expor pessoas a contágio é crime —declarou.