Correio braziliense, n.20554, 01/09/2019. Mundo, p.12

 

Amizade em reexame

Silvio Queiroz

01/09/2019

 

 

Diplomacia » A relação histórica entre Brasil e França passa por um dos momentos mais difíceis em meio à troca pública de acusações entre Bolsonaro e Macron sobre as queimadas na Amazônia. Há o receio de que o descompasso afete projetos bilaterais

Uma relação que se estende praticamente por 500 anos, com uma história de afinidades, admiração mútua e até uma dose de paixão, passa hoje por um momento como os que vivem alguns casais quando opções e interesses parecem distanciar-se — a hora da chamada “DR”. As notícias das últimas semanas sobre queimadas e desmatamento na Amazônia alimentaram um bate-boca público, com termos duros e ofensas pessoais, entre o presidente Jair Bolsonaro e o colega francês, Emmanuel Macron. De ambos os lados, há quem receie que a quebra do encanto entre os dois governos possa afetar projetos bilaterais de cooperação, em especial na área militar, e empreitadas de alcance multilateral, como o acordo de livre comércio entre União Europeia (EU) e Mercosul.

No auge da controvérsia, Macron levou à reunião de cúpula do G7 a noção de que o fogo na maior floresta tropical do mundo seria uma crise internacional. Chegou a colocar em discussão a soberania brasileira sobre a Amazônia. No Brasil, foi aventada a possibilidade de chamar para consultas o embaixador em Paris, uma medida prevista na liturgia diplomática para expressar desagrado. Como já tinha feito quando da assinatura do acordo, o presidente francês voltou a relacionar a ratificação do acordo comercial à postura do governo brasileiro quanto aos compromissos assumidos como signatário do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas.

Um diplomata europeu que acompanhou as longas negociações EU-Mercosul quando representou seu país na sede do bloco, em Bruxelas, disse duvidar que Macron chegue efetivamente a obstruir a ratificação. Pressionado internamente por uma onda de protestos, na virada do ano, o presidente francês dá sinais de que aposta em firmar uma liderança própria no cenário continental e sair da sombra da chanceler (chefe de governo) alemã, Angela Merkel. Esse observador lembra, porém, que o sistema continental tem meandros que permitem a um país-membro, em especial com o peso diplomático da França, “retardar o andamento, questionar aspectos específicos, propor alterações, enfim, colocar cascas de banana, como vocês costumam dizer no Brasil”.

Projetos bilaterais

No horizonte imediato, as preocupações se concentram sobre um conjunto de projetos bilaterais de cooperação na área de defesa, considerados especialmente importantes pelos militares brasileiros. O mais crítico é o desenvolvimento do primeiro submarino de propulsão nuclear, sonho antigo e parte de um acordo que prevê a transferência de tecnologia francesa e a construção de mais cinco veículos convencionais — o primeiro lançado em dezembro último e o segundo previsto para 2020. Também no ano que vem, deve começar a produção do veículo nuclear, com conclusão prevista inicialmente para 2029.

Além do Programa de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub), Brasil e França mantêm acordos sobre aquisição e fabricação de helicópteros, concentrados em uma unidade instalada pela Avibrás em Itajubá (MG). São projetos longamente discutidos e que deslancharam, em boa parte, graças à relação pessoal fluida entre os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Nicolas Sarkozy, na década passada. Na época, os franceses só não conseguiram também vender os caças de última geração Rafale, entre outros fatores, graças à preocupação dos militares com a concentração de programas em um único parceiro — e a escolha recaiu sobre o Gripen, em parceria com a Suécia.

Outra diplomata europeia, que acompanhou de posição privilegiada a “lua de mel” entre Brasília e Paris no governo Lula, vê a crise no “casal” pela perspectiva da reaproximação acentuada do presidente brasileiro com os Estados Unidos de Donald Trump. Ela cita como exemplo a recente venda para a Boeing da indústria aeronáutica brasileira Embaer, que conquistou importantes nichos de mercado com aviões comerciais e militares, como o SuperTucano. “Talvez Macron sinta algum ‘ciúme’ do flerte entre Bolsonaro e Trump”, sugere, em tom de brincadeira.

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Piratas, acadêmicos, artistas e generais

01/09/2019

 

 

Um mal-entendido que correu mundo e ficou célebre pode servir como retrato dos laços extensos e profundos entre os dois países: a frase, atribuída ao general Charles de Gaulle, então presidente da França, segundo a qual “o Brasil não é um país sério”. Ela circulou em 1963, no episódio conhecido como “a guerra da lagosta”, um contencioso em torno de direitos de pesca.  Foi desmentida mais tarde pelo embaixador brasileiro em Paris à época do incidente, Carlos Alves de Souza, que assumiu a autoria da declaração, mencionada em conversa informal e particular. Três décadas mais tarde, o presidente francês Jacques Chirac voltou ao tema para, além de isentar De Gaulle, elogiar a capacidade do Brasil para “tratar com seriedade a gestão pública sem perder o charme”.

Formalidades à parte, a atração mútua remonta praticamente ao desembarque de Pedro Álvares Cabral, em 1500. As incursões repetidas de piratas franceses na costa da colônia recém-descoberta, em busca do pau-brasil, levaram Portugal a reforçar o patrulhamento e intensificar a ocupação do litoral. Em meados do século, o militar e diplomata Nicolas Durand de Villegagnon instalou na Baía da Guanabara a França Antártica, primeira empreitada da França para encravar um entreposto no Brasil.

A investida, que incluiu alianças com os índios tamoios e tupinambás, foi derrotada em menos de duas décadas, mas está na raiz da fundação do Rio de Janeiro. Inspirou nova tentativa no atual Maranhão, a França Equinocial, que resultou em São Luís. Rendeu também o enredo para Como era gostoso o meu francês, filme de 1971, dirigido por Nelson Pereira dos Santos.

Paixão de cinema

O namoro cinematográfico teve expressões também do outro lado do Atlântico. Em 1959, Marcel Camus lançou Orfeu do Carnaval, alegoria inspirada em peça teatral de Vinícius de Moraes. O “poetinha” está presente em outro flerte franco-brasileiro, insinuado em 1966, por Claude Lelouche, no celebrado Um homem, uma mulher. O protagonista, vivido por Jean Louis-Trintignant, canta para a contraparte, interpretada por Anouk Aimée, uma versão em francês do Samba da bênção, de Vinícius e Baden Powell.

Se a França dos reis absolutistas estimulou indiretamente a colonização portuguesa, o iluminismo do século 18, que nutriu a Revolução Francesa de 1789, esteve na base de movimentos que acompanham a independência do Brasil. No mesmo ano da proclamação da república francesa, seus ideais inspiravam a Inconfidência Mineira. Ainda com maior identidade, eles estariam presentes na Confederação do Equador, liderada por Frei Caneca, em Pernambuco, em 1824 — já sob o reinado de Pedro I. O próprio Grito do Ipiranga, no 7 de setembro de 1822, foi a culminância de um processo iniciado com a vinda da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, fugindo das tropas de Napoleão Bonaparte.

Positivismo

Embora o Reino Unido tenha sido a potência econômica preponderante no Brasil Império, a influência intelectual da França se enraizou — entre outras fontes, no positivismo de Auguste Comte, que impregnou gerações de militares. Não por acaso, a jovem república contratou a Missão Militar Francesa, em 1919, para instruir e  reequipar as Forças Armadas. Mesmo depois da aproximação com os Estados Unidos, fruto da participação da FEB na 2ª Guerra, a referência sobreviveria na forma do apelido dado aos generais ligados à Escola Superior de Guerra que protagonizaram o golpe de 1964: “turma da Sorbonne”, a célebre Universidade de Paris.

A academia francesa, por sinal, tem alguns de seus nomes ilustres inscritos na história do ensino superior no Brasil. O antropólogo Claude Lévi-Strauss e o historiador Fernand Braudel tiveram participação destacada, nos anos 1930, no estabelecimento das escolas de ciências humanas da Universidade de São Paulo (USP), a mesma que teve entre seus expoentes, décadas mais tarde, o hoje ex-presidente Fernando Henrique Cardoso — que, como exilado durante o regime militar, lecionou sociologia na Universidade de Nanterre. (SQ)