O globo, n.31464, 29/09/2019. Sociedade, p. 39

 

Família em disputa 

Constança Tatsch 

29/09/2019

 

 

Mecanismo criado para evitar que o pai ou a mãe interfiram na formação psicológica da criança com o objetivo de ela repudiar o outro genitor, a Lei de Alienação Parental pode estar com os dias contados. Especialistas, organizações e grupos de mães alegam que ela vem servindo como ferramenta para acobertar abusos sexuais. E conseguiram elaborar no Senado um projeto para revogara Lei 12.318/2010. Rela torado P L, a senadora Leila Barros (PSB-DF) deve emitir seu parecer em um mês. O coletivo Mães na Luta, que tem mais de 11 mil seguidores no Facebook e reúne mulheres que entraram na Justiça para manter aguarda dos filhos, fez uma coletânea de 130 casos de disputa de guarda em um ano.

No levantamento, foi descoberto um padrão: ao denunciarem um suposto abuso sexual cometido pelo pai contra o filho, mulheres são acusadas de alienação parental e acabam perdendo aguarda para justamente aquele de quem estão tentando proteger acriança. O estudo do Mães na Luta mostra que, das 66 denúncias de abuso sexual, todas tiveram como reação dos advogados de defesa o uso da Lei de Alienação Parental. Destas, 27 casos foram julgados e, em 24 deles, houve a reversão da guarda para o pai.

— Você ouve do seu filho uma coisa que te destrói, pede ajuda, é tratada como criminosa e o entregam para quem abusou dele. É uma violência absurda. Somos escravas dessa injustiça — argumenta Luz Morena, cofundadora do Mães na Luta, que pede a revogação da lei. Também a favor da anulação da legislação, Valeria Scarance, promotora e Coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Púbico de São Paulo, diz que, em sua prática, já viu a inversão da guarda em casos em que o laudo comprovava abusos:

—Nós queremos conscientizara população de que a lei não é um patrimônio nacional e pode colocar crianças e mulheres em risco.

PRESSÃO INTERNACIONAL

O Brasil é o único país onde ainda existe legislação similar. No mundo, aliás, a própria origem da “síndrome da alienação parental”, que são os supostos efeitos na criança, é questionada. Batizada pelo psiquiatra americano Richard Gardner, que morreu em 2003, ela não teve formulação baseada em estudos acadêmicos nem foi reconhecida pela Associação de Psiquiatria Americana.

O penúltimo país onde a lei vigorava era o México. Mas, em 2017, um caso que envolvia disputa judicial pela guarda de três filhos, com acusação de abuso sexuale uso da Lei de Alienação, terminou de forma trágica, com o suicídio da mãe e a morte das crianças e dos avós. Após uma ação, a Suprema Corte declarou alei inconstitucional e ela foi revogada e retirada do Código Civil.

O caso mobilizou a opinião pública, e o dispositivo foi revogado. Em 2016, 18 organizações de direitos humanos entregaram um documento à ONU apontando entraves para a aplicação da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw), tratado assinado em 1979. Um dos obstáculos era justamente as leis derivadas da síndrome da alienação parental.

Um ano depois, o comitê que implementaria as determinações da Convenção Interamericana de Belém do Pará, pacto da OE Apara erradicara violência contra mulheres, recomendou a proibição do uso da Lei da Alienação Parental para desvalorizar denúncias. Ajuíza titular da4ªV arade Órfãos e Sucessões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJ-RJ), Andrea P achá, aval iaque alei deveria ser usada apenas em casos excepcionais, pois, para ela, virou uma ferramenta de manipulação processual:

— Achoque atendência é a revogação da lei. Caso isso aconteça, não irá impactar no direito de convivência porque, coma Leide Guarda Compartilhada, de 2014, que garante o convívio de forma equânime, e lajá foi esvaziada. Mesmo entre os especialistas que não defendem a revogação da lei há um consenso de que ela precisa mudar.

CRÍTICAS

O advogado Mario Delgado coordenou um grupo de estudos sobre a lei no Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Para ele, os principais problemas são a falta de estrutura do Judiciário, notadamente na exatidão das perícias judiciais, e apena da inversão da guarda, que não deveria ser automática:

—Aplicam automaticamente apenada inversão da guarda, queéo último recurso a ser adotado. A decisão judicial acaba sendo afobada, simplesmente porque não se comprovou uma denúncia, às vezes por perícias imperfeitas e laudos inconclusivos. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, pediu no ano passado a revogação parcial da lei, em dois aspectos: no uso como resposta a denúncias de abuso enodas punições, como é ocaso da inversão da guarda. Depois de atuar em mais de 30 casos de denúncia de abusos contra crianças desde 2017, o perito especialista em análise criminal Rildo Silveira, do TJ-RJ, diz que “toda acusação precisa ser estudada nos mínimos detalhes. É muito fácil dizer que a mulher fez uma falsa acusação de abuso.”

— Um laudo é isento de juízo. O perito deve falara verdade, analisar, não julgar. E faltam pessoas capacitadas e especializadas nesse tipo de crime sexual —afirma. A promotora Valeria Scarance explica as dificuldades de se detectar o abuso: — O crime de estupro de vulnerável acontece quase sempre em casa, praticado por conhecidos, principalmente pais e padrastos, e menos de 10% dos abusadores praticam a penetração completa, optando por atos que não deixam vestígios, como sexo oral, masturbação, beijo, introdução dos dedos. Isso dificulta aprova, e normalmente o laudo peri cia lé negativo. Passa quase a ser uma prova de que é mentira. E não é. Para a promotora, há mais entraves: o abusador costuma estar acima de qualquer suspeita, e acrianças e retrata por não suportar apressão.

—Olha a incongruência: como há prioridade do processo cível, já se entende que houve alienação parental antes do fim da investigação criminal do abuso. Essa lei carrega conteúdo discriminatório gigantesco. Nunca fugimos do estigma da mulher louca, que busca vantagem ou vingança. Quanto mais ela tenta provar que o filho é abusado, m ai sé considerada alienadora —diz. O Conselho Federal de Psicologia relata dificuldades na elaboração dos laudos psicológicos. Os tribunais, diz a conselheira do órgão Iolete Ribeiro, têm poucos profissionais, que, por sua vez, são pressionados para apresentarem laudos definitivos e sucintos:

— Há pressão sobre o perito para dizer se houve ou não abuso, ma sessa não é a função da psicologia. O psicólogo pode fazer uma avaliação do processo de desenvolvimento da criança, observando prejuízos. Mas os juízes fazem até assédio moral por laudos curtose conclusivos. Apressada Justiça não dá espaço para que acrianças e manifeste no tempo dela. Para a psicóloga, alei carrega enorme contradição:é contra a alienação, mas, para fazer justiça, aliena o outro.