O globo, n.31406, 02/08/2019. Mundo, p. 21

 

Paraguai cancela acerto sobre Itaipu

Janaína Figueiredo 

Ana Rosa Alves 

02/08/2019

 

 

Salvo por enquanto. O presidente do Paraguai, Mario Abdo Benítez, é cercado por partidários em frente ao Palácio López, em Assunção: risco de impeachment foi afastado, ao menos temporariamente

O chanceler do Paraguai, Antonio Rivas Palacios, anunciou ontem o cancelamento da ata diplomática assinada com o Brasil que deflagrou uma grave crise política no país vizinho e pôs o presidente Mario Abdo Benítez sob ameaça de impeachment. A decisão foi comunicada formalmente ao embaixador brasileiro em Assunção, Carlos Simas Magalhães, que a referendou em nome do governo Bolsonaro. Na ata agora anulada, o governo paraguaio havia concordado em pagar mais pela energia da hidrelétrica binacional de Itaipu .

“A Alta Parte Contratante paraguaia comunicou sua decisão unilateral e soberana de deixar sem efeito a Ata Bilateral de 24 de maio de 2019”, diz o documento paraguaio, assinado pelo chanceler Rivas e pelo embaixador brasileiro. Segundo o documento, Brasil e Paraguai determinaram que as instâncias técnicas de Itaipu redefinam o cronograma de energia a ser contratada pela Eletrobras e pela Ande (estatal de energia do Paraguai) no período entre 2019 e 2022.

‘QUEREMOS UM BOM ACORDO’

Foi justamente a pressão brasileira para que o Paraguai declarasse uma contratação maior da energia dita “garantida”, deixando de contar com a chamada “energia excedente”, bem mais barata, que levou ao acerto de maio e à crise política que ele provocou. De acordo com técnicos paraguaios, os gastos do país aumentariam em ao menos US$ 200 milhões anuais.

O documento divulgado pelo Paraguai afirma ainda que as duas partes “coincidiram em que a falta de acordo sobre o cronograma de energia a ser contratada de Itaipu afeta negativamente o faturamento dos serviços de eletricidade da entidade binacional e, nesse sentido, destacaram a importância de se encontrar uma solução para o problema no curto prazo”.

Em Brasília, o presidente Jair Bolsonaro disse que o governo brasileiro está negociando com o Paraguai um novo acordo sobre o preço da energia de Itaipu.

— Nós queremos um bom contrato com o Paraguai, um bom acordo com o Paraguai. Estamos trabalhando neste sentido —disse ele.

De acordo com fontes do Itamaraty, o cancelamento da ata de maio foi uma decisão paraguaia, que o Brasil aceitou. Na quarta-feira, diante da ameaça de impeachment de Abdo Benítez, seu aliado, o presidente Bolsonaro, já havia admitido a possibilidade de revogar o acordo de maio. O cancelamento da ata conseguiu frear no Congresso do Paraguai, ao menos momentaneamente, a tentativa de impeachment de Abdo Benítez e seu vice, Hugo Velázquez, acusados pela oposição de traição à pátria. O opositor Partido Liberal, que na quarta-feira anunciara a decisão de iniciar o processo de impeachment, perdeu os votos necessários para vencer.

A anulação do documento também levou à suspensão de uma reunião hoje, em Brasília, na qual o chanceler paraguaio estaria presente.

Em pronunciamento à nação pela TV, logo após o cancelamento do acordo com o Brasil, o presidente paraguaio afirmou que “triunfou a democracia”,em referência à decisão de deputados de seu partido, o Colorado, de não apoiarem o pedido de impeachment.

‘CAUSA NACIONAL’

Sem mencionar detalhes da ata de 24 de maio, Abdo Benítez afirmou que “a renegociação de Itaipu é uma causa nacional”,referindo-se ao processo previsto para 2023, quando a dívida de Itaipu estará paga e o Paraguai espera obter liberdade para negociar como quiser a parte da energia que lhe cabe, mas que não consome (hoje, essa energia tem que ser vendida à Eletrobras). O chefe de Estado informou que será criada uma comissão para assessorar o governo nas negociações com o Brasil, incluindo setores da oposição e acadêmicos.

—Não tenho outro interesse a não ser deixar um país melhor para os paraguaios — declarou o presidente, que pediu que “esta crise se transforme numa oportunidade”.

O nome do presidente do Brasil não foi citado, como tampouco detalhes das negociações entre os dois países. O presidente admitiu “erros” e disse que diante deles seu governo será “drástico”. O nome de seu vice, alvo de acusações de corrupção envolvendo Itaipu, foi evitado no discurso.

Segundo o secretário de Relações Internacionais da Frente Guazú, Ricardo Canese, especialista em energia, a ata revogada estabelecia que neste ano 89% da energia mais barata produzida por Itaipu (a energia excedente) seriam destinados ao Brasil. Até agora, o Paraguai recebia a maior parte dessa energia, apontou Canese, como determina o artigo XIII do tratado de 1973.

—Foi uma gravíssima violação do tratado e faria o Paraguai perder entre US$ 200 milhões e US$ 300 milhões —assegurou o especialista e membro do partido opositor liderado pelo ex-presidente Fernando Lugo (2008-2012). ( Colaboraram André Duchiade e Eliane Oliveira)

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Itamaraty alertou contra 'quebra de ordem democrática'

Eliane Oliveira 

02/08/2019

 

 

O Ministério das Relações Exteriores advertiu ontem contra a “quebra da ordem democrática” no Paraguai, mencionando a “inteira convergência” entre o presidente Jair Bolsonaro e seu colega paraguaio, Mario Abdo Benítez, ameaçado de impeachment por causa de um acordo com o Brasil no qual admitiu aumentar o preço pago pelos paraguaios pela energia da hidrelétrica binacional de Itaipu.

“Ao reiterar total respeito ao processo constitucional do Paraguai, o Brasil confia em que o processo seja conduzido sem quebra da ordem democrática, em respeito aos compromissos assumidos pelo Paraguai no âmbito da cláusula democrática do Mercosul — Protocolo de Ushuaia”, diz o comunicado do Itamaraty, sugerindo que o país poderia ser suspenso do bloco em caso de impeachment.

Na nota — que segundo fontes do Itamaraty foi redigida pelo próprio chanceler Ernesto Araújo — o governo brasileiro ressalta o “excelente” relacionamento entre os presidentes e a“inteira convergência de valores” que existe entre os países vizinhos. Segundo a Chancelaria, tal relação é sem precedentes e se deve à “coincidência de visões estratégicas” entre os dois líderes na “promoção da democracia na região e à proteção dos direitos da família” (esta última menção é pouco usual em notas da diplomacia brasileira).

Segundo o Itamaraty, o governo brasileiro “está convencido” de que o líder do Paraguai tem “todas as condições” para continuar a governar. Em  2012, o então presidente de esquerda Fernando Lugo foi afastado num processo de impeachment que durou apenas 36 horas, após 17 pessoas morrerem durante a desocupação de uma área próxima à fronteira com o Brasil. Na ocasião, ele também foi acusado de nepotismo, má gestão das Forças Armadas e de ser brando no combate à violência.

O Brasil não se opôs à decisão unilateral do Paraguai de anular a ata sobre a contratação da potência de Itaipu no período 2019-2022, assinada em 24 de maio de 2019, por considerar que houve uma “emergência de ordem política”. Porém, o governo brasileiro mantém a visão de que existe um desequilíbrio no intercâmbio energético entre os dois países e não abre mão da continuidade das negociações entre a estatal paraguaia Ande e a Eletrobras.

— Estamos pagando mais do que eles, isso é injusto, e nossa posição é de corrigir esse desequilíbrio — disse uma fonte do governo brasileiro, acrescentando que, se dependesse do Paraguai, o cancelamento seria de comum acordo com o Brasil, e não uma decisão unilateral.

Paralelamente, o governo brasileiro se apressou a evitar o que avaliava como o pior cenário: o impeachment de Abdo Benítez, aliado de primeira hora de Jair Bolsonaro. Diante da gravidade da situação, o próprio Bolsonaro deu sinal verde para a suspensão da ata. (Colaborou Ana Rosa Alves)