Correio braziliense, n. 20531, 09/08/2019. Ciência, p. 18

 

Exploração voraz do solo pode intensificar a fome

Paloma Oliveto

09/08/2019

 

 

Relatório das Nações Unidas alerta que, se não mudarmos as práticas de uso da terra, há o risco de enfrentarmos uma catástrofe alimentar. Os autores ressaltam, ainda, que a ação humana predatória tem os efeitos intensificados pelas mudanças climáticas

A voracidade com que o homem tem explorado o solo é uma ameaça à segurança alimentar e, caso não modifique os padrões produtivos, boa parte da população mundial corre o risco de passar fome. Especialmente em tempos de mudanças climáticas, que intensificam as pressões sem precedentes impostas por indústria e agropecuária, é preciso agir em curto prazo para evitar uma catástrofe. Esses são os recados principais de um documento com 1,2 mil páginas elaborado por cientistas e aprovado pelos 195 países-membros da Organização das Nações Unidas na quarta-feira. Ontem, o conteúdo do documento foi divulgado pela ONU.

O relatório é fruto de três anos de trabalho de uma centena de cientistas de mais de 50 países, especialistas em solo e clima. “Temos que mudar substancialmente a maneira como utilizamos nossas terras. Precisamos pensar de maneira muito mais exaustiva como utilizaremos cada hectare. As terras têm que permitir cultivar nossa comida, proporcionar biodiversidade e água doce, dar trabalho a bilhões de pessoas e capturar bilhões de toneladas de carbono”, disse, em uma coletiva de imprensa em Genebra, Piers Forster, professor da Universidade de Leeds, no Reino Unido, e um dos autores do relatório.

De acordo com o texto, atualmente, 72% da superfície do planeta livre de gelo é explorada pela humanidade. A intensificação do uso do solo libera o dióxido de carbono estocado pela vegetação e também causa erosão, reduzindo a capacidade da terra de suportar o plantio e manter o CO2 livre da atmosfera, alertam os cientistas no relatório, segundo o qual um terço de todo o solo já está degradado.

“Hoje, 500 milhões de pessoas vivem em áreas que passam por desertificação. As pessoas que já vivem em áreas degradadas ou desertificadas estão sendo afetadas cada vez mais negativamente pelas mudanças climáticas”, observou Valérie Masson-Delmonte, vice-presidente de um dos três grupos de trabalho do IPCC. “A forma como temos usado o solo não é sustentável e contribui para as mudanças climáticas”, disse, lembrando que o aumento da temperatura se soma às atividades humanas predatórias, o que amplifica mais ainda a pressão sobre o planeta.

Fome e desperdício

Jim Skea, copresidente de outro grupo de trabalho, destacou que, como se não bastasse a pressão sobre o solo, até 30% dos alimentos são perdidos ou desperdiçados. Isso em meio a relatos recentes de que mais de 820 milhões de pessoas estão subnutridas no mundo. Ele lembrou que, com as estimativas de que a população global chegue a 10 bilhões em 2050, o quadro se agravará.

Na coletiva de imprensa, Skea destacou que os países devem encontrar meios de lidar com o desperdício, reduzindo, assim, a pressão sobre o solo e as emissões resultantes dos gases de efeito estufa decorrentes, inclusive, do cultivo de espécies para geração de biocombustíveis. “Limitar o aquecimento global a 1,5ºC ou mesmo a 2ºC envolverá a remoção de dióxido de carbono da atmosfera, e a terra tem um papel crítico a desempenhar nessa tarefa. As práticas agrícolas podem ajudar a estocar o carbono nos solos, mas também podem significar o uso de mais bioenergia com ou sem captura e armazenamento de carbono.”

Emissão de CO2

De acordo com o relatório do IPCC, agricultura, silvicultura e outros usos da terra contribuem para cerca de um quarto das emissões de gases de efeito estufa, fato que os formuladores de políticas devem considerar ao decidir como devem investir para se adaptar e mitigar os efeitos das mudanças climáticas. “Reduzir as emissões de gases de efeito estufa de todos os setores é essencial se quisermos manter a carga em 2ºC”, disse Debra Roberts, vice-presidente do grupo de trabalho II. Hans-Otto Pörtner, copresidente do grupo III, ressaltou que essas medidas têm de ser imediatas. “Não há possibilidade de alguém dizer: ‘Ah, a mudança climática está acontecendo e nós vamos nos adaptar a ela. A capacidade de adaptação é limitada.”

Em nota, Paulo Adário, estrategista sênior de florestas da Organização Não Governamental Greenpeace, disse que o relatório do IPCC indica que já não basta zerar as emissões globais de combustíveis fósseis. “É fundamental zerar o desmatamento, proteger e restaurar nossas florestas e ecossistemas naturais, que são sorvedouros naturais de CO2, além de substituir commodities agrícolas por alimentos sustentáveis, reduzindo a produção e o consumo de carne, hoje o maior vetor de destruição da Amazônia e outros ecossistemas”.

Segundo o IPCC, o consumo de carne mais do que duplicou nos últimos 60 anos, à medida que os solos foram convertidos para uso agrícola a um ritmo sem precedentes na história da humanidade. Hoje, as emissões do sistema alimentar como um todo, incluindo produção e consumo, representam até 37% do total global de emissões de gases de efeito estufa induzidas pelo homem.

Frase

“As terras têm que permitir cultivar nossa comida, proporcionar biodiversidade e água doce, dar trabalho a bilhões de pessoas e capturar bilhões de toneladas de carbono”

Piers Forster, professor da Universidade de Leeds, no Reino Unido, e um dos autores do relatório

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Recados ao Brasil

09/08/2019

 

 

Para Carlos Rittl, secretário executivo da rede Observatório do Clima, o relatório dá “dois recados poderosos ao governo brasileiro”. “Ao negar o aquecimento global e estimular o desmatamento da Amazônia, a administração de Jair Bolsonaro está rasgando dinheiro, já que o sistema alimentar será reorientado para atividades de baixo carbono que o Brasil tem potencial de liderar. Ao mesmo tempo, ao aderir à ideologia obscurantista de Donald Trump, o presidente do Brasil desperdiça oportunidade de negócios, inovação e investimento nesse novo setor de uso da terra que o relatório do IPCC delineia.”

Segundo o especialista, o aumento do desmatamento na Amazônia nos últimos meses vai contra todas as conclusões do relatório. “A atitude do governo brasileiro em relação às florestas, questionando as medições do desmatamento em vez de agir contra ele, são um desastre ambiental, ético e econômico.”

Dados oficiais divulgados na terça-feira mostram que, em julho, as áreas desmatadas na Amazônia totalizaram 2.254 km2 em julho, 278% a mais que o mesmo mês do ano passado (596,6 km2). Nos últimos 12 meses, o aumento do desmatamento na região foi de 40% com relação aos 12 meses anteriores, totalizando 6.833 km2, de acordo com o sistema de detecção em tempo real (Deter), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

O relatório do IPCC publicado ontem é o segundo de uma série de três “informes especiais”. O primeiro, divulgado no ano passado, abordou a questão da possibilidade de conter o aquecimento global a 1,5°C. O terceiro e último, previsto para setembro, examinará os oceanos e a criosfera. (PO)

Principais conclusões

» As atividades humanas já afetam mais de 70% do solo livre de gelo do planeta. Além disso, a agricultura utiliza 70% da água do mundo, e as zonas com seca aumentam 1% a cada ano

» Os solos, com sua vegetação e sua capacidade de refletir uma parte importante do calor do Sol, absorveram quase 29% das emissões de CO2 geradas pelos humanos entre 2006 e 2016. Com o aumento das temperaturas, a absorção pode diminuir

» Os solos representam ainda uma fonte de gases do efeito estufa, já que a agricultura, o desmatamento e outras atividades representam 23% do total de emissões geradas pelos humanos

» Comparada ao período pré-industrial, a temperatura nos solos já aumentou 1,53ºC

» O risco de insegurança alimentar poderá passar de elevado (com aumento de 1,5ºC da temperatura) a muito elevado (abaixo dos 2ºC)

» O total de solos reconvertidos necessários para limitar a 1,5ºC o aumento da temperatura varia conforme projeções de consumo humano nas próximas décadas