O Estado de São Paulo, n. 46015, 12/10/2019. Política, p. A4

 

Atos expõem disputa entre Bolsonaro e governadores

Matheus Lara

Caio Sartori

Denise Luna

12/10/2019

 

 

Clima de rivalidade fica explícito durante agendas do presidente com Doria em SP e Witzel, no Rio; paulista é alvo de vaias ao participar de formatura de sargentos da PM

O clima de rivalidade nas relações do presidente Jair Bolsonaro (PSL) com os governadores de São Paulo, João Doria (PSDB), e do Rio, Wilson Witzel (PSC), ficou explícito ontem em duas cerimônias públicas que reuniram os três políticos. Em São Paulo, durante evento de formatura de sargentos da Polícia Militar, Doria foi vaiado pelo público, enquanto o presidente foi recebido aos gritos de “mito”. Mais tarde, na cerimônia de integração do submarino Humaitá, em Itaguaí (RJ), Bolsonaro se dirigiu ao governador fluminense e disse que trabalha para entregar no futuro um governo “muito melhor” para quem queira assumir a Presidência “de forma ética, moral e sem covardia”.

Bolsonaro e Witzel se afastaram após o governador manifestar diversas vezes que sua intenção é chegar ao Palácio do Planalto. Bolsonaro também olhou para o governador quando falou em “inimigos internos”.

Tanto Witzel quanto o governador de São Paulo foram eleitos com campanhas associadas ao então candidato do PSL. Na capital paulista, Doria e o presidente se encontraram pela primeira vez em um evento público após o desgaste provocado por críticas mútuas. Bolsonaro chegou a afirmar que o tucano é “ejaculação precoce” ao comentar a possibilidade de o governador concorrer em 2022. Doria, por sua vez, fez duras críticas ao discurso do presidente na Assembleia-Geral da ONU e recentemente afirmou que “nunca foi bolsonarista” – apesar de ter utilizado o slogan “Bolsodoria” no segundo turno da eleição do ano passado.

Ontem, porém, ao discursar, Doria fez um gesto para o presidente e disse que ele é um “amigo dos brasileiros em São Paulo”. “Fiz questão de estar presente para mostrar que o Estado de São Paulo é parceiro das boas ações do Brasil. O que for positivo para o Brasil e para São Paulo, o governador estará ao lado. Em São Paulo, não fazemos oposição ao Brasil”, disse Doria, cuja presença era dúvida até horas antes da formatura, quando o compromisso foi incluído em sua agenda oficial. Doria foi vaiado ao chegar e ao discursar no evento, que reuniu um público de cerca de 5 mil pessoas, conforme a PM.

No entorno do governador, a avaliação é de que as vaias aconteceram por causa da presença do senador Major Olimpio (PSL), da reserva da PM e que tem um histórico de oposição aos governos tucanos no Estado. Doria não comentou as vaias.

Bolsonaro, ao discursar, elogiou militares, criticou governos que o antecederam disse “os únicos a quem deve obediência” são as pessoas. Citou protocolarmente Doria no início de sua fala e depois não fez mais menções ao governador. Os dois deixaram o evento sem falar com a imprensa.

Horas depois, na região metropolitana do Rio, no Complexo Naval, o presidente se referiu aos inimigos ao se dirigir ao governador fluminense. “Como político digo a vocês, o nosso partido é o Brasil. Temos inimigos dentro e fora do Brasil. Os de dentro são os mais terríveis”, afirmou Bolsonaro. “Trabalho para que, no futuro, quem, por ventura, de forma ética, moral e sem covardia um dia por acaso venha assumir o destino da nossa nação encontre a nossa pátria numa situação bem melhor do que assumi.”

Pivô da crise entre Witzel e o PSL de Bolsonaro no Rio, o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), que preside o partido no Estado, estava na plateia de convidados. O governador e Bolsonaro estavam lado a lado na cerimônia. Mas, quando vagou uma cadeira durante o discurso de Azevedo e Silva, o presidente pulou para ela. Ao falar no púlpito, Witzel saudou Flávio e lembrou que eles “caminharam juntos” durante a eleição do ano passado.

O presidente também destacou, ao lembrar um dos lemas da campanha de 2018, que “seu partido é o Brasil”. Ele vive uma crise com o PSL, ao qual se filiou antes do pleito do ano passado (mais informações na pág. A12).

Na cerimônia de integração do submarino Humaitá, Bolsonaro não fez referências à França. O submarino é o segundo construído após parceria firmada entre os dois países em 2008, ainda no governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Ele destacou a importância do projeto para proteger a “soberania nacional” e disse que o Brasil vai vencer o que considera inimigos externos.

As relações conturbadas dos governadores com o presidente preocupam parlamentares no Congresso. Fontes próximas dos governos de Bolsonaro e de Doria dizem tentar “baixar a fervura”. A leitura é de que as eleições de 2022 ainda estão distantes e que o desgaste institucional será grande se os governantes trocarem farpas até lá.

O estranhamento, porém, não é negado. “Bolsonaro jamais ignoraria o governador, que é o chefe da PM. Mas é errado achar que existe aproximação entre eles”, afirmou odeputado Capitão Derrite (PP-SP), vice-líder do governo na Câmara.

- "INIMIGOS"

“Como político digo a vocês, o nosso partido é o Brasil. Temos inimigos dentro e fora do Brasil. Os de dentro são os mais terríveis.”

Jair Bolsonaro

PRESIDENTE DA REPÚBLICA, DURANTE EVENTO NO COMPLEXO NAVAL, NO RIO

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Doria e o presidente na mesma pista estreita e limitada

Carlos Melo

12/10/2019

 

 

Doria e Bolsonaro estão na mesma pista estreita e limitada, mas não desistirão de alçar voo. Enquanto simultaneamente não miravam a presidência, o “bolsodoria” fez sentido — foi até uma forma de retirar Geraldo Alckmin do caminho. Agora, com os olhos nos mesmos cargo e eleitores, não há como evitar colisões.

Fenômeno de 2018, Bolsonaro se entende hoje como uma máquina eleitoral. A despeito de seu governo definhar, a razão obsessiva de sua ação é sempre eleitoreira: consolidar os 30% que ainda lhe apoiam, fechando as portas às pretensões de adversários no seu campo. Se conseguir, estará no 2.º turno, torcendo por novo confronto com o PT.

Para Doria, é mais difícil: precisa arrancar considerável naco de eleitores do presidente, confinando-o ao gueto da direita extremada e cruza os dedos para que também nenhuma candidatura viável se imponha do centro-direita ao centro-esquerda, esmagando-o no mesmo espaço que o rival.

Logo, para além do fato, não se deve dar maior relevo à vaia ou à ovação recebidas por Doria e Bolsonaro, respectivamente, na cerimônia dos sargentos da PM, em São Paulo. Primeiro lugar, porque ainda faltam peças no tabuleiro. Depois, naquele espaço de soldados armados, quem vaiava e ovacionava era desde sempre o eleitor cativo do capitão. Mesmo em casa, ali Doria já não entra — e talvez prefira não entrar. A questão é se ocupará outros cômodos.