O Estado de São Paulo, n. 45977, 04/09/2019. Metrópole, p. A16

 

Doria veta trecho de livro e Bolsonaro quer projeto sobre 'ideologia de gênero'

Renata Cafardo

Marco Antônio Carvalho

04/09/2019

 

 

Educação básica. Governador de São Paulo viu 'apologia' em material da rede paulista distribuído para estudantes do 8.º ano e disse que texto estava em desacordo com a base curricular. Presidente considera que atribuição de legislar sobre o tema é do governo federal

No Twitter. Bolsonaro e Doria criticaram ontem ‘ideologia de gênero’ nas escolas; segundo governador, material aprovado continha ‘erro inaceitável’

O governador de São Paulo, João Doria (PSDB), mandou recolher material didático de Ciências para adolescentes de 13 anos da rede paulista que, segundo ele, fazia apologia à “ideologia de gênero”. A apostila tratava de diversidade sexual e explicava termos como “transgênero” e “bissexual”. Também ontem, o presidente Jair Bolsonaro disse ter determinado ao Ministério da Educação (MEC) que elabore um projeto de lei contra a “ideologia de gênero” no ensino fundamental, que atende jovens de 6 a 14 anos.

O material da rede paulista, para estudantes do 8.º ano do fundamental 2, traz texto chamado “Sexo biológico, identidade de gênero e orientação sexual”. Ele aborda a diversidade sexual e explica diferentes termos como “transgênero”, “homossexual” e “bissexual”. No caso de “transgênero”, por exemplo, a definição é “pessoa que nasceu com determinado sexo biológico e que não se identifica com o seu corpo”.

No material, há o seguinte trecho: “Podemos dizer que ninguém ‘nasce homem ou mulher’, mas que nos tornamos o que somos ao longo da vida, em razão da constante interação com o meio social.” A apostila, parte de uma coleção distribuída pela rede desde 2009, foi atualizada este ano e chegou às escolas em agosto.

Cerca de 30 minutos depois, Bolsonaro falou no Twitter. Na publicação nas redes sociais, ele destacou que a Advocacia-Geral da União já se manifestou no sentido de que “legislar sobre ideologia de gênero” é uma competência federal. O governador e o presidente têm críticos da “ideologia de gênero” entre seus partidários e vêm disputando esse público, já mirando a eleição de 2022.

Para entender. A abordagem sobre transexualidade e identidade de gênero na infância ou na adolescência não é consensual na sociedade. Parte dos pais discorda da proposta de tratar desses assuntos sob viés diferente de suas crenças pessoais ou em idade considerada, na visão dessas famílias, prematura para essas discussões. Outro grupo defende a inclusão do debate sobre sexualidade nos colégios como forma de estimular o respeito à diversidade, o combate ao preconceito e promoção à saúde pública, ao evitar doenças sexualmente transmissíveis e gravidez precoce (mais informações nesta página).

Para os defensores do debate, o termo teria surgido após a igualdade de gênero ser reconhecida como luta da Organização das Nações Unidas (ONU) há 25 anos. No caso, grupos contrários – sobretudo religiosos – passaram a usar o termo “ideologia de gênero” para combater e dar tom negativo à causa. Um guia técnico internacional sobre educação sexual elaborado em 2018 pela Unesco, braço da ONU para educação, diz, em capítulo dedicado à construção social de gênero, que é importante para crianças de 5 a 8 anos “entender a diferença entre sexo biológico e gênero”.

Já o outro grupo vê ênfase equivocada nos estudos do psicólogo e sexólogo John William Money, que nos anos 1950 foi um dos primeiros a postular que a diferença entre homens e mulheres é um fato social, uma construção, em vez de algo biológico. Também foi um dos primeiros a popularizar a palavra “gender” para definir identidade sexual. Anteriormente, gender era um termo gramatical usado para se definir se algo era masculino, feminino ou neutro.

A apostila vetada frisava que “ninguém nasce homem ou mulher”. “Fomos alertados de um erro inaceitável no material escolar dos alunos do 8.º ano da rede estadual”, escreveu Doria, no Twitter. Segundo a Secretaria da Educação, a “responsabilidade pela aprovação do conteúdo” está sendo apurada. Ainda segundo a pasta, não haverá prejuízo material nem de conteúdo aos jovens.

Para a secretaria, o termo “identidade de gênero” está em desacordo com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que define os objetivo de aprendizagem em cada etapa escolar, aprovada em 2017 pelo Ministério da Educação. A nota ainda completa que “o assunto extrapola os documentos que tratam do respeito às diferenças e à multiplicidade de visões da nossa sociedade”. O governo paulista anunciou também que vai instaurar uma comissão de especialistas para analisar esse e todos os outros materiais produzidos para as escolas.

Em Brasília. Procurado, o MEC informou que ainda não vai se posicionar sobre o pedido para elaborar um projeto de lei sobre “ideologia de gênero”. O presidente Bolsonaro já criticava publicações sobre a diversidade de gênero e sexual antes mesmo de ser eleito presidente. Enquanto parlamentar, ele criticou o chamado “kit gay” – um material anti-homofobia para formação de professores, feito por uma ONG, que não chegou a ser distribuído.

PARA LEMBRAR

Gestão Temer barrou termo

A questão de gênero fazia parte da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), mas acabou retirada do texto pela gestão do MEC durante o governo de Michel Temer. O tema ficou restrito a um adendo, que fala sobre educação religiosa e é facultativo. O texto diz que os adolescentes, em torno dos 15 anos, devem “discutir as distintas concepções de gênero e sexualidade segundo diferentes tradições religiosas e filosofias de vida” e “discutir as diferentes expressões de valorização e de desrespeito à vida, por meio da análise de matérias nas diferentes mídias”.

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Não há consenso sobre como debater tema

Reanata Cafardo

Felipe Frazão

04/09/2019

 

 

Enquanto alguns especialistas em educação destacam a importância de debater a identidade de gênero nas escolas, outros acreditam que o currículo deve focar em conteúdos “essenciais”. Já grupos religiosos veem uma ameaça à família.

Segundo a presidente executiva do Todos pela Educação, Priscila Cruz, a identidade de gênero faz parte da rotina jovem e é importante “abrir espaço para esse tipo de debate”. Para ela, a grande dificuldade é preparar os professores. “Não é a mesma coisa que ensinar equação do segundo grau. É preciso ter apuro pedagógico.” Por isso, ela diz compreender o receio de algumas famílias de que a discussão seja feita de modo exagerado e “passe dos limites do que é esperado da escola e tenha colisão com os valores que elas acreditam”. Esse exagero também é temido por movimentos como o Escola sem Partido.

Para Claudia Costin, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e ex-diretora do Banco Mundial, “informar que isso (identidade de gênero) existe é, sim, papel da educação” e recolher livros seria algo “no extremo”. Segundo ela, países como Inglaterra e França também incluem a identidade de gênero na educação de seus jovens.

Já o ex-secretário executivo do MEC João Batista Araújo e Oliveira tem dúvidas sobre a necessidade dessa elaboração nos colégios. “O currículo e o livro didático deveriam se concentrar em questões essenciais para a formação das pessoas, isso deveria estar definido em currículo. Se bem feito, dificilmente incluiria essas questões.”

Religião. A bancada evangélica, por sua vez, celebrou a proposta de Bolsonaro. “Parabéns. Essa questão de gênero já foi derrotada pelo Congresso em 2013”, afirmou um dos líderes do grupo, o deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ). Durante a Marcha para Jesus em Brasília, no dia 10, o presidente ressaltou que ideologia de gênero “é coisa do capeta”. “Família é homem e mulher.” Da mesma forma, desde os anos 1990 a Igreja Católica critica essa linha. Neste ano pela primeira vez o Vaticano lançou texto a respeito: “Homem e Mulher os Criou”. Já o papa Francisco ligou a defesa do termo à “guerra global” contra a família.