Valor econômico, v.19, n.4710, 18/03/2019. Política, p. A9

 

Decisão do STF pode atingir delações 

Luísa Martins 

18/03/2019

 

 

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de fixar a competência da Justiça Eleitoral, e não da Federal, para casos de caixa dois deve ter impacto direto nos acordos de colaboração premiada firmados - ou ainda em negociação - no âmbito da Operação Lava-Jato.

Criminalistas que advogam em processos da operação afirmaram reservadamente ao Valor que, com esse novo cenário, delações que narram a ocorrência de recursos não declarados de campanha deverão precisar da adesão do Ministério Público Eleitoral (MPF) e do juiz eleitoral.

Acordos que ainda estão em tratativas mais avançadas, portanto, precisarão de um novo aval - um obstáculo a mais para a sua validação. Um passo atrás também é esperado também para as delações que já foram homologadas - ainda que seja baixa a possibilidade de anular todo o procedimento, novas ressalvas e análises precisarão ser realizadas pela seara eleitoral.

No julgamento concluído na quinta-feira passada, o STF decidiu por 6 a 5 que cabe à Justiça Eleitoral processar casos em que há suspeitas de crimes eleitorais (como o caixa dois), ainda que no escopo da investigação também constem crimes comuns, como corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

O resultado frustrou a força-tarefa da Lava-Jato: os procuradores temem um esvaziamento da operação, que ontem completou cinco anos. Na visão do Ministério Público, a Justiça Eleitoral não está adequadamente estruturada para julgar crimes comuns - além disso, as penas costumam ser mais brandas e o tempo de prescrição, menor.

Apesar dos longos debates durante a análise do tema pelo Supremo, que se mostrou praticamente dividido, ministros avaliam que ainda restam lacunas a serem preenchidas. O plenário, por exemplo, não chegou a decidir se a prática do caixa dois é ou não considerada um crime relacionado ao exercício do mandato parlamentar.

Trata-se do requisito fundamental para definir se um caso deve ser processado na Corte - em razão da prerrogativa de foro especial - ou remetido à primeira instância. Isso vale tanto para a instrução de inquéritos quanto para acordos de colaboração premiada que implicam autoridades da República.

Dessa forma, ainda está em aberto se delações que relatam casos de caixa dois em campanhas eleitorais seguem sendo de competência do STF ou se também serão declinadas ao juízo de primeiro grau.

Os advogados já se preparam para peticionar junto aos juízes federais para que as apurações sobre seus clientes sejam remetidas à Justiça Eleitoral. Há um consenso de que esse também é um ato sem grande complexidade - e que pode até mesmo ser determinado "de ofício" pelo juiz, isto é, por iniciativa própria.

A remessa para a seara eleitoral deve ter reflexos em inquéritos contra vários políticos envolvidos na Lava-Jato, como os ex-ministros Eliseu Padilha (MDB) e Gilberto Kassab (PSD); o ex-prefeito do Rio de Janeiro Eduardo Paes (DEM) e o ex-deputado Eduardo Cunha (MDB), hoje preso em Curitiba.

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"Ministro do Supremo tem mais poder do que o Congresso"

Malu Delgado 

18/03/2019

 

 

Ao contrário das previsões apocalípticas de crise institucional, a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar erros de procedimentos de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) é absolutamente republicana e adequada, e não abalaria o sistema de freios e contrapesos, opina o professor e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, Ivar Hartmann.

À frente do Núcleo de Ciências de Dados Jurídicos da FGV-Direito, Hartmann coordenou, de 2012 a 2018, o projeto Supremo em Números.

O professor faz a avaliação considerando o "mundo ideal", mas admite que no "mundo real" da política e suas idiossincrasias a investigação poderá ser desvirtuada pelos parlamentares com objetivo de questionar decisões de mérito de ministros da mais alta Corte do país.

O timing político para a criação da CPI não poderia ser mais propício, diz Hartmann. Por 6 votos a 5, o Supremo tomou a decisão "altamente impopular", na avaliação do professor, de determinar que casos de corrupção e lavagem de dinheiro que tenham conexão com crimes eleitorais, como caixa dois, sejam julgados pela Justiça Eleitoral, e não mais pela Justiça Federal. Na última quinta-feira, no mesmo dia em que o STF tomou essa decisão, um grupo de senadores, liderado por Alessandro Vieira (PPS-SE), anunciou ter conseguido as 27 assinaturas necessárias para a criação da CPI. Hartmann não considera que a Justiça Eleitoral terá condições de analisar tais crimes, por razões de desenho institucional. "É uma expertise que a Justiça Eleitoral não tem e que a Justiça Federal levou muito tempo para desenvolver."

O clima está conflagrado e o presidente do Supremo, Dias Toffoli, anunciou no mesmo dia do julgamento a abertura de inquérito para apurar fake news e denunciação caluniosa contra ministros da Corte em redes sociais.

Para o especialista, a investigação sigilosa anunciada por Toffoli não é um desejo majoritário da Corte. "É a reação de alguns ministros do Supremo. Não preciso dizer os nomes, todos sabem quem são, existem alguns ministros que desrespeitam regras básicas de procedimento com muito mais frequência que outros. E esses ministros têm muito mais interesse em contra-atacar."

Hartmann vê neste contra-ataque reações equivocadas do STF. Ele cita como exemplo o episódio do rastreamento da Receita Federal a altos patrimônios de autoridades públicas, procedimento usual que alcançou ministros do Supremo. "Não acredito que tenha havido nenhum abuso da Receita. Onde pode ter tido algo errado é no vazamento da existência da investigação e de resultados preliminares da investigação. O lamentável é que a resposta de alguns ministros do Supremo tenha sido tão virulenta e tão anti-republicana."

Se a CPI vingar, é possível que pedidos de impeachment de magistrados sejam propostos pelos senadores. "Há uma tendência de essa CPI não seguir um caminho bom para o país, mas ainda assim eu prefiro que essa CPI ocorra do que não ocorra, porque hoje um ministro do Supremo, infelizmente, tem mais poder sozinho do que o Congresso inteiro."

A situação de "desequilíbrio institucional" é flagrante, acrescenta ele, quando "um ministro do Supremo, sozinho, remove o presidente de uma Casa do Congresso". Hartmann se refere à decisão do ministro Marco Aurélio Mello de afastar Renan Calheiros da presidência do Senado, em 2016, após o senador ter se tornado réu em ação penal. No colegiado a decisão foi revertida.

O sistema brasileiro é falho porque não há accountability para atos de ministros do Supremo, endossa Hartmann. Os magistrados da mais alta Corte do país não se submetem ao crivo e à fiscalização do Conselho Nacional de Justiça. "Se uma CPI, mesmo a versão ruim dela, acabar em pizza, ainda assim acho que a existência dela vai colaborar um pouco para tentarmos voltar a uma situação de equilíbrio institucional."

No mundo ideal descrito por Hartmann, seria positivo que a investigação do Senado apontasse desvios de condutas de ministros e propusesse mudanças à Constituição, prevendo possibilidades de punições brandas e médias, e não só impeachment.

Pela Constituição, cabe ao Senado propor e votar um pedido de impeachment de ministro do Supremo. "O Senado é o único órgão capaz de colocar em xeque a conduta de um ministro do Supremo", atesta o pesquisador.

Por isso, caberia sim, reforça, analisar casos de suspeição e impedimento de ministros. Tomar decisões monocráticas indevidas e atrasar a análise de julgamentos pelo colegiado é desvio de conduta, enfatiza o pesquisador. "Perceba que é muito fácil a gente separar o desvio de procedimento do conteúdo da decisão", atesta.

Porém, no mundo real, o ex-coordenador do Supremo em Números crê que "vamos ter uma CPI que vai ficar tentando jogar uma luz negativa sobre o conteúdo, o mérito de decisões dos ministros, o que é muito ruim para o país". Foi isso o que ocorreu quando o Congresso propôs a Lei de Abuso de Autoridades, com o único intuito, segundo ele, de contestar decisões da Lava-Jato.

"Vejo o risco da demonização na CPI, dada a composição atual do Congresso, de ministros progressistas não por terem desviado regras de procedimento, mas sim pelo conteúdo de suas decisões, que são invioláveis." É neste caso que mora o perigo, alerta Hartmann, porque o Senado poderá propor e votar impeachment de ministro "majoritariamente em função de suas opiniões e de seus posicionamentos de mérito, o que seria gravíssimo". Ser contra ou a favor do aborto, da descriminalização da maconha, ou da união civil de pessoas do mesmo sexo é irrelevante para uma CPI, enfatiza.

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Para especialistas, impacto na Lava-Jato é difícil de medir 

Cristian Klein

18/03/2019

 

 

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de atribuir a investigação e o julgamento de crimes relacionados a caixa dois para a Justiça Eleitoral tende a enfraquecer o combate à corrupção e tem como pano de fundo a tentativa do Supremo de retomar seu papel diante do protagonismo que os procuradores da Lava-Jato tiveram nos últimos cinco anos. As avaliações são de quatro especialistas consultados pelo Valor. Eles analisaram as razões e os efeitos de uma decisão do STF que, apontam, pode levar à nulidade de casos já julgados pela força-tarefa, atrasar investigações e provocar a prescrição dos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Sobre o potencial de a decisão "acabar" com a Lava-Jato, há divergência, contudo.

Professor de uma disciplina sobre corrupção na faculdade de direito da USP, o advogado Gustavo Justino de Oliveira afirma que a decisão do STF foi tomada dentro do contexto de um "barril de pólvora" e em reação a um processo de maior institucionalização da Lava-Jato, como a tentativa dos procuradores da força-tarefa de Curitiba de criar uma fundação anticorrupção com R$ 2,5 bilhões oriundos da Petrobras. "A Lava-Jato teve uma institucionalização muito forte nos últimos anos. Tem mais holofotes que o Supremo. É uma decisão que vai contra tudo isso. O Supremo tenta retomar seu lugar de protagonista. E tem a ver com a presidência do [ministro Dias] Toffoli, que busca resgatar o lugar da política e do próprio Judiciário", afirma Oliveira.

O especialista prefere a cautela ao tratar de uma possível "morte da Lava-Jato" por não saber, diz, como a Justiça Eleitoral vai se comportar. Na primeira instância, afirma, a tendência é que o julgamento dos crimes de corrupção associados a caixa dois tenha um resultado semelhante ao da Justiça comum, porque "não tem muita diferença e o juiz é praticamente o mesmo". Mas ao subirem para a segunda instância, nos Tribunais Regionais Eleitorais (TREs), e para a terceira, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), é que os processos devem ser alvos de interferência, pela politização (já que o Executivo faz indicações às Cortes) e pela composição dos tribunais (que contam com advogados de carreira). "O maior problema vai estar nos TREs e no TSE, onde há politização muito forte", diz.

Para o diretor-executivo da Transparência Brasil, Manoel Galdino, os percalços já acontecerão na primeira instância, pela falta de estrutura da Justiça Eleitoral, que passaria a receber processos de crimes de corrupção, geralmente complexos e que demandam dedicação e especialização. Ele alerta que a decisão é um incentivo para que criminosos comuns vinculem seus crimes a delitos eleitorais para que fiquem impunes. Numa situação que classifica de esdrúxula, mas possível, ele diz que um bandido que realiza um sequestro-relâmpago - e faz alguém sacar dinheiro num caixa eletrônico - pode argumentar que também coagiu a vítima a votar num candidato. "Coação para votar em alguém é crime eleitoral. E, automaticamente, esse crime comum, que não tem nada a ver com eleições, iria para a Justiça eleitoral", diz.

Ainda que o expediente seja de difícil convencimento e o juiz eleitoral decida remeter o caso para a Justiça comum, o artifício pode virar uma estratégia protelatória para que o crime prescreva, o que é agravado pelo mandato temporário de dois anos dos juízes eleitorais, argumenta o cientista político. Para Galdino, o novo cenário cria ainda incentivos para o aumento dos crimes eleitorais, como estratégia de se escapar da Justiça comum. É o caso de um traficante de drogas que resolva doar a um candidato por meio de caixa dois apenas para garantir que, caso seja pego, seu processo vá para a Justiça eleitoral. Além disso, acrescenta, a decisão do STF desestimula a colaboração premiada, pois os criminosos tenderão a temer menos as consequências de serem julgados por um sistema menos eficiente. "As consequências são desastrosas. Não sabemos nem o que vai acontecer com os casos já julgados, que podem ser anulados, e com os que estão sendo julgados", diz.

Para Silvana Batini, procuradora regional da República e professora da FGV Direito Rio, a decisão do Supremo "é uma tragédia". Há um mês, em entrevista ao Valor, ela considerava o pacote anticrime enviado ao Congresso pelo governo Bolsonaro um retrocesso. Ironicamente, sua esperança agora é que o projeto seja aprovado, já que a decisão do STF vai num sentido muito pior. "É quase uma pá de cal na Lava-Jato, é um freio de mão puxado no combate à corrupção. A única saída agora é o pacote do Moro", afirma.

Para Michael Mohallem, também da FGV Direito Rio, o placar de 6 x 5 pode significar que a "frágil maioria" na Corte em favor da operação esteja "virando", meses antes de importantes julgamentos como o da prisão em segunda instância.