O Estado de São Paulo, n. 45979, 06/09/2019. Política, p. A8

 

Bolsonaro veta 19 pontos da lei de abuso

Luci Ribeiro

Sandra Manfrini

Renato Onofre

06/09/2019

 

 

Extensão das restrições ao projeto aprovado na Câmara é criticada por parlamentares, que articulam derrubada de parte dos pontos

Câmara. Rodrigo Maia (DEM-RJ) argumenta que projeto foi aprovado com amplo apoio, após acordo entre parlamentares

O presidente Jair Bolsonaro sancionou ontem a Lei de Abuso de Autoridade com 19 artigos vetados relativos a 36 dispositivos. O texto aprovado na Câmara em agosto, com 44 artigos, prevê punição a agentes públicos, incluindo juízes e procuradores, em uma série de situações. No Congresso, parlamentares da base governista e da oposição já articulam a derrubada de pelo menos parte dos vetos determinados pelo presidente.

A lei e os vetos constam em edição extra do Diário Oficial da União publicada ontem. Bolsonaro rejeitou trechos que tratam da restrição ao uso de algemas, prisões em desconformidade com a lei, de constrangimento a presos e o que pune criminalmente quem desrespeitar prerrogativas de advogados. Há vetos também a dispositivos sobre perda do cargo como punição, obtenção de prova de forma ilegal, indução a pessoa para praticar infração penal com o fim de capturá-la, iniciar investigação sem justa causa e negar acesso aos autos de investigação.

Os vetos atendem a reivindicações feitas por parlamentares, entidades de classe e d o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro. Além disso, atos de rua em 12 Estados e no Distrito Federal, no mês passado, tinham como uma das bandeiras a defesa dos vetos.

Ontem, durante live ao lado de Moro, Bolsonaro disse que a decisão sobre os vetos “não foi fácil” porque havia “interesse de tudo que é lado”. “Os vetos foram ponderados e foram feitos com respeito ao Parlamento. Tenho certeza de que vão considerar as razões do senhor”, afirmou o ministro da Justiça na transmissão ao vivo.

Parlamentares da base e da oposição, no entanto, já dão como certa a derrubada de pelo menos parte dos vetos. “É um número alto e vai ter muita resistência. Acho que o presidente faz um cálculo político de manter suas convicções mesmo sem o apoio do Congresso”, disse o deputado Coronel Tadeu (PSL-SP), aliado de Bolsonaro.

O presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Felipe Francischini (PSL-PR), afirmou que não há clima para a manutenção dos vetos e que será necessário o governo filtrar quais “brigas” a base terá de comprar. “São muitos pontos. Não há como manter todos”.

Aliada de Bolsonaro, a deputada Carla Zambelli (PSL-SP) disse que o presidente ouviu o “povo”. “O presidente foi eleito pelo povo e não pelo Congresso. É ao povo a que ele responde. Os vetos vêm atender a essa demanda e vai ter apoio da gente e das redes sociais.”

O recado de que os vetos não passariam na Câmara foi enviado a Bolsonaro desde a semana passada. A interlocutores, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), deixou claro que o projeto é demanda do Parlamento e tem apoio da maioria dos líderes da Casa. No dia 20, em reunião com parlamentares ligados ao meio jurídico, Maia pediu ajuda para defender a derrubada dos vetos caso pontos essenciais fossem suprimidos.

Segundo quem estava no encontro, Maia afirmou que o veto ao artigo que trata sobre o uso de algemas estava acertado para ser mantido, bem como o que trata das prerrogativas dos advogados, embora tenha ficado decepcionado pelos ataques do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, à proposta.

O deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), um dos líderes do Centrão – bloco formado por DEM, PL, PP, Republicanos –, afirmou que o grupo vai trabalhar para derrubar todos os vetos. “Achei melhor do jeito que ele (Bolsonaro) fez. Se tivesse vetado um, dois ou três pontinhos lá, provavelmente não ia ter nenhuma movimentação para derrubar os vetos. O que ele fez foi jogar para a plateia, vetou o máximo possível, porque sabe que nós vamos derrubar. Então, vamos derrubar tudo que ele fez”, disse.

Senado. Após o anúncio dos vetos, o Presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), minimizou a possível derrubada pelo Congresso. “Estão fazendo um cavalo de batalha em uma coisa que é natural. Em vários projetos de lei votados no Parlamento, ele é sancionado ou vetado. Só tem dois caminhos. É da política, é da democracia”, declarou Alcolumbre.

No Casa, a resistência é capitaneada pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL). Antes mesmo da confirmação dos pontos vetados, o senador usou o Twitter para dizer que atuaria pela derrubada. “Se Bolsonaro vetar a Lei de Abuso no que é fundamental para garantias individuais e coletivas, contrariará o STF, a maioria da sociedade e esses vetos certamente serão derrubados pelo Congresso.”

PRINCIPAIS VETOS

- Atividade policial

Trecho prevê a proibição de exercer funções de natureza policial ou militar no município em que tiver sido praticado o crime e naquele em que residir ou trabalhar a vítima, pelo prazo de um a três anos.

- Prisão/flagrante

Artigo prevê detenção de 1 a 4 anos para quem decretar prisão em manifesta desconformidade com a lei. Também foi vetado dispositivo que determina detenção de 1 a 4 anos para autoridade que executar prisão de pessoa que não esteja em situação de flagrante delito.

- Algemas

Pelo dispositivo, caso agente público submeta um preso ao uso de algemas quando manifestamente não houver resistência à prisão, ameaça de fuga ou risco à integridade física do próprio preso, esse agente pode ser punido com detenção de até 2 anos.

- Busca e apreensão

O trecho prevê pena de 1 a 4 anos de detenção para quem executa mandado de busca e apreensão em imóvel mobilizando veículos, pessoal ou armamento de forma ostensiva e desproporcional, para expor o investigado a situação de vexame.

- Investigação

Regra vetada prevê punir com até 4 anos de detenção o agente público que iniciar uma investigação sem uma causa fundamentada ou contra pessoa inocente.

- Advogados

Artigo trata como atitude passível de detenção negar acesso a autos de investigação, seja ela preliminar ou avançada. Bolsonaro vetou, ainda, artigo que torna crime (até 1 ano de detenção) violação de prerrogativas de advogados (como poder falar com cliente em particular e ter acesso à íntegra dos processos).

- Antecipação de culpa

Dispositivo pune com detenção de 6 meses a 2 anos o responsável pelas investigações que antecipar, por meio de comunicação ou rede social, atribuição de culpa antes de concluída a apuração e formalizada a acusação.

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Prevaleceu interesse dos agentes públicos e não do cidadão

João Paulo Martinelli

06/09/2019

 

 

O presidente acatou as sugestões dos representantes de entidades e deixou para o Congresso a derrubada dos vetos. Entre os vetos, alguns chamam a atenção. O primeiro é o veto ao art. 9o, que criminaliza a decretação de prisão fora das hipóteses previstas em lei.

Como é comum o juiz de primeira instância decretar prisão preventiva sem fundamento, se o tribunal revogar a prisão por falta de fundamento, isso poderia gerar responsabilidade penal de quem autorizou o confinamento. Também foi vetado o uso indevido de algemas. Já há uma súmula vinculante do STF que proíbe uso injustificado de algemas, portanto, o veto vai no sentido contrário da jurisprudência.

O art. 26 também chama a atenção pelo veto, pois proibia a autoridade de forjar flagrante para responsabilizar alguém que não praticaria o crime. Essa prática é proibida como obtenção de prova, mas poderia ser considerada crime. Outro ponto é o veto ao crime do art. 34, que criminaliza o agente que deixar de corrigir, de ofício ou mediante provocação, tendo competência para fazê-lo, erro relevante que sabe existir em processo ou procedimento.

Ou seja, se o juiz tem conhecimento de que há erro numa decisão de prisão, por exemplo, e não a corrige, poderia ser responsabilizado criminalmente. Há outros pontos que merecem debate – que não houve –, mas fica claro que prevaleceram os interesses dos agentes públicos em detrimento do cidadão.

Ninguém explicou em que medida o projeto poderia prejudicar o combate à corrupção. No entanto, as pessoas marginalizadas continuam mais vulneráveis ao abuso do Estado. O mais curioso é que o crime de desacato continua em vigência e utilizado por agentes públicos para inibir o cidadão descontente que quer se manifestar.

Não há paridade entre autoridade e pessoa comum. Nem sequer há interesse das entidades de classe em buscar essa paridade. Se o cidadão comum reclamar da atuação de um agente público, poderá ser preso por desacato, mas não poderá reclamar do abuso de autoridade.

Parece que a maior prova de que há abuso de autoridade é que magistrados e membros do Ministério Público não confiam em seus pares em eventual acusação.

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'Nossa vida continua a mesma'

Matheus Andrade

06/09/2019

 

 

A facada / Um ano depois, médico que operou Bolsonaro ainda tem de responder às ‘teorias conspiratórias’

Médico. Luiz Borsato operou Bolsonaro após a facada

Enquanto boa parte do Brasil se preparava para o feriado de 7 de setembro de 2018, um trauma no abdômen na região central de Juiz de Fora mudaria a vida de muitos. No caso de Luiz Henrique Borsato, cirurgião da Santa Casa de Misericórdia de plantão naquela tarde, seria travada uma corrida contra o tempo.

Reconhecido como o “médico que salvou Jair Bolsonaro” da facada desferida por Adélio Bispo – que está preso desde então –, Borsato destaca que a rapidez e a eficiência no atendimento beneficiaram o então candidato. “A primeira hora após o acidente é muito importante. A medida em que o tempo vai passando, o paciente vai se tornando cada vez mais grave”, disse ao Estado. O atentado a Bolsonaro completa um ano hoje.

O trajeto entre a Rua Halfeld, local do atentado, e a Santa Casa foi percorrido em cerca de dez minutos. Bolsonaro já recebia os primeiros procedimentos que lhe salvaram a vida. “Estávamos no centro cirúrgico na hora, e já havíamos realizados outras cirurgias no dia. Ele foi levado para a equipe de médicos emergencistas, que realizaram o primeiro socorro rápido, e fizeram a tomografia”, diz o cirurgião, que faz questão de ressaltar o trabalho de todos os envolvidos.

A hemorragia era um risco real para Bolsonaro, que perdeu quase um terço do volume comum de sangue, necessitando de quatro bolsas de reposição. “Ele perdeu entre 1,5L e 2L de sangue, isso porque conseguimos intervir e parar o sangramento”.

No primeiro contato com o paciente, Borsato descreve que “ele estava confuso e se queixava de dor, não falou mais nada”. No dia seguinte, antes de ser transferido para o hospital Albert Einstein, em São Paulo, Bolsonaro agradeceu ao cirurgião por tudo o que havia sido feito.

Questionamento comum é o fato de não ter havido sangue aparente após a facada. O cirurgião disse estar acostumado a responder sobre o tema, e não se incomoda com as teorias conspiratórias que envolvem seu trabalho. “Se não fosse uma figura pública, ninguém falaria isso.”

Separando o que considera “ato político” do “lado médico”, Borsato não acredita que as desinformações tenham efeitos negativos, e destaca que “nossa vida cotidiana, no último ano, continua a mesma”. Para ele, tudo faz parte do campo político, não sobre sua atuação técnica. “As pessoas são livres para terem suas opiniões”.

No caso da cirurgia de hérnia, que será realizada domingo, a quarta no abdômen de Bolsonaro, Borsato afirma que, em algum momento, a mesma intervenção provavelmente seria realizada. “Todo paciente submetido a uma cirurgia abdominal tem o risco de desenvolver hérnia.”