O Estado de São Paulo, n. 46033, 30/10/2019. Espaço Aberto, p.A2

 

A hora do jornalismo

 

 

 

Nicolau da Rocha Cavalcanti

30/10/2019

 

 

 

O jornalismo sempre sofreu ataques. Nunca houve épocas tranquilas para esse insano trabalho de narrar o acontecer político, econômico, cultural e social de uma cidade, de um Estado, de um país, do mundo. Mas se os ataques e os perigos sempre foram constantes, os tempos atuais parecem reverberar de forma ainda mais intensa esse amálgama de opiniões críticas ao jornalismo.

Tal fenômeno de acirramento não está restrito a um país nem é exclusivo de uma bandeira ideológica. O generalizado sentimento de mal-estar, tão típico da contemporaneidade, volta-se amiúde contra o jornalismo. Para agravar a situação, a revolução tecnológica alterou – e continua alterando – não apenas a base econômica das empresas de comunicação, mas toda a relação entre a notícia e o leitor. Para muitos, esse novo estado das coisas parece autorizar ainda mais as afrontas contra o jornalismo.

Esse quadro pode dar a impressão de que o jornalismo perdeu força. Sua relevância pública já não seria a mesma. Seu impressionante status cívico de outrora seria exatamente isto: coisa do passado, capítulo pretérito da história humana. A tecnologia atualmente disponível teria tornado dispensável a intermediação do jornalismo para conhecer e compreender a realidade.

Sedutora com sua promessa de autonomia, tal narrativa sobre o jornalismo não encontra respaldo nos fatos. O jornalismo nunca foi tão relevante e necessário como agora. Vejamos.

Ressalta-se, em primeiro lugar, que as críticas promovem um grande bem para o jornalismo. Não há perfeição no jornalismo. Por mais acertos que faça, por mais êxitos que conquiste, por mais impressionante que seja a sua história, um jornal sempre comete erros. As críticas são, assim, uma oportunidade de diagnosticar equívocos, rever processos e aprimorar a qualidade do que se publica diariamente. A atual situação de enfrentamento impede que o jornalismo entre numa zona de conforto, o que é muito positivo para os jornais e para os leitores.

Mas os ataques e as críticas ao jornalismo, além de ajudarem a aprimorar os jornais, revelam de forma contundente a atualíssima relevância do próprio jornalismo. Os jornais continuam incomodando. O jornalismo continua sendo uma voz autônoma, que não se curva aos interesses do momento. Precisamente por isso são tantas e tão contínuas as tentativas de controlá-lo ou desautorizá-lo.

Ao contrário de algumas previsões, a facilidade de comunicação dos tempos atuais – dada em grande medida pelas redes sociais e pelos aplicativos de mensagens – não diminuiu o alcance da voz do jornalismo. Esse incrível aparato tecnológico não tem sido capaz de produzir, por si só, informação confiável. A tecnologia não substituiu os jornais. O que ela fez foi explicitar, em proporções inauditas, a importância e os diferenciais do jornalismo.

O fenômeno merece reflexão. O aparato tecnológico permitiu a proliferação de grande quantidade de fake news, em todas as áreas. As fake news não são apenas notícias incorretas. São mensagens – de texto, áudio ou vídeo – produzidas com a finalidade de disseminar desinformação. São, portanto, a antinotícia, o antijornalismo. E sem nenhum elemento que possa transmitir confiabilidade, a eficácia comunicativa das fake news baseia-se na tática de agradar ao público receptor. Ainda que sejam massivas, elas nunca falam para toda a sociedade. Prova disso é o tom sempre sectário de sua linguagem.

Na tentativa de agradar a seu público, as fake news nunca são disruptivas. Elas nunca confrontam o receptor. Seu intento é sempre corroborar uma ideia, uma impressão, um sentimento já existente. Ainda que tenham aparência de novidade, são profundamente repetitivas. Replicam preconceitos, medos, ressentimentos. Nessa lógica de manipulação, elas são também simplistas. Não há matizes, tampouco tons médios. Sua proposta de realidade é sempre dualista.

Mas qual é a importância das fake news para o debate sobre o jornalismo? Suas deficiências revelam, por contraste, as qualidades do jornalismo. As fake news tornam patente, por exemplo, a necessidade de que a informação seja construída por um processo confiável, verificável e corrigível, absolutamente comprometido com a máxima fidelidade possível à verdade factual.

Outro ponto fundamental é o caráter simplista das fake news, que nunca suscitam reflexão. Elas apenas pedem adesão. Fica em evidência, assim, o papel reflexivo do jornalismo. Os jornais nunca foram meros provedores de conteúdo informativo. Eles sempre foram um espaço privilegiado de reflexão, de diálogo, de opinião. Não porque queiram manipular a realidade, numa tentativa de dar determinada “moral da história” aos fatos. Ocorre exatamente o oposto. Em respeito à realidade, sempre complexa, rica em matizes, insubmissa a esquemas dogmáticos, é que o jornalismo sempre teve a necessidade de suscitar e manter, em seu entorno, um debate qualificado sobre os assuntos públicos.

Trata-se de algo muito mais profundo do que simplesmente fazer constar o “outro lado”. É o reconhecimento de que a realidade, para ser conhecida e, principalmente, para ser compreendida, sempre exige análise, ponderação, contestação. Não há respostas prontas, tampouco significados unívocos. É preciso debruçar-se diariamente sobre a realidade com a disposição de apurar, investigar, e não se deter no superficial, no oficial ou no majoritário.

A democracia precisa do jornalismo. Com seu caráter investigativo, ele expõe as mazelas da sociedade e os arbítrios do poder. Mas há também outro aspecto, igualmente essencial. Os jornais são decisivos para a existência de um debate público racionalmente qualificado, cerne de toda democracia. Não há democracia sem argumentação racional.

Não é exagero. O jornalismo pode contribuir para preencher precisamente as duas maiores carências do nosso tempo: a de diálogo e a de racionalidade. Por que maltratá-lo?

(...)

 

ADVOGADO E JORNALIST