O Estado de São Paulo, n. 45945, 03/08/2019. Metrópole, p. A20

 

Após polêmica com Bolsonaro sobre avanço do desmate, diretor do Inpe cai

Giovana Girardi

03/08/2019

 

 

 Recorte capturado

 

 

Ambiente. Ricardo Galvão sai após intenso bombardeio por parte do governo às informações de que os alertas de desmatamento da Amazônia dispararam. Depois de ser acusado pelo presidente de ter ligação com ONGs, Galvão rebateu e alegou atitude ‘covarde’

O diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Galvão, que esteve no centro da polêmica com o presidente Jair Bolsonaro sobre os dados que mostram alta do desmatamento da Amazônia, foi exonerado do cargo ontem. Segundo Galvão, a crise não vai respingar no órgão. O governo federal destacou que a escolha do substituto “se dará de acordo com o mérito necessário”.

O pesquisador entrou no Inpe em 1970 e cumpriria mandato até 2020. Ele deixa a direção do instituto após duas semanas de intenso bombardeio por parte do governo às informações do instituto que mostram que desde maio os alertas de desmatamento da Amazônia dispararam, atingindo em julho o valor mais alto desde 2015 para um único mês. O desmatamento observado pelos alertas entre agosto de 2018 e 31 de julho deste ano é 40% maior do que no período anterior, conforme o Estado mostrou anteontem.

A decisão, que já era esperada, foi anunciada pelo próprio Galvão, após reunião com o ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes. “Diante da maneira como eu me manifestei com relação ao presidente, criou um constrangimento, ficou insustentável, e eu serei exonerado”, afirmou.

Em sua conta no Twitter, Pontes mandou “abraços espaciais”. “Agradeço, pela dedicação e empenho. Tenho certeza de que sua dedicação deixa um grande legado para a instituição e para o País”. No fim da tarde, o ministério ainda divulgou uma nota em que agradeceu a Galvão “pelo profissionalismo à frente do instituto, pela condução dos projetos que gerenciou” e “destaca seu alto gabarito e currículo exemplar”.

O Ministério da Ciência afirmou ainda que, para Pontes, “o Inpe é um instituto de grande relevância para sociedade brasileira, com imenso prestígio no Brasil e no exterior, mantendo seu compromisso com as pesquisas e projetos que desenvolve”. E informou que a escolha do novo diretor “se dará de acordo com o mérito necessário ao cargo”.

A polêmica começou com declarações de Bolsonaro no dia 19, quando, em encontro com jornalistas estrangeiros, acusou os dados do Inpe de serem “mentirosos” e insinuou que Galvão estaria “a serviço de alguma ONG”. Em entrevista ao Estado no dia seguinte, o pesquisador reagiu, afirmando que essa atitude do presidente era “pusilânime e covarde”.

Os dias seguintes foram marcados por várias outras críticas de Bolsonaro (mais informações nesta pág.), questionando os dados e dizendo que a divulgação dos números prejudica a imagem do País. Ele ainda afirmou que queria recebê-los antes de serem tornados públicos.

Pontes endossou o chefe e afirmou que compartilhava o estranhamento sobre as informações. Galvão foi convocado a dar explicações. Na quarta, técnicos do Inpe estiveram reunidos com Bolsonaro e o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. Após a reunião, Salles admitiu que o desmatamento está em alta na Amazônia, mas voltou a afirmar que há problema com os dados, como uma suposta duplicação de alertas e desmates mais antigos que estariam sendo vistos agora.

Anteontem, ao lado de Bolsonaro, Salles disse que vai contratar um novo sistema de monitoramento. Já Bolsonaro subiu o tom e disse poderia tomar uma decisão mais drástica, caso se provasse “má-fé” no caso.

Futuro. Por fim, após o encontro com Pontes, ontem, Galvão disse que concordou com a saída e afirmou que sua maior preocupação era que a crise não respingasse no Inpe. “Isso não vai acontecer. Discutimos em detalhes como vai ser a continuação da administração.” Segundo o pesquisador, não foi preciso defender os dados. “Ele (Pontes) concorda com os dados do Inpe, sabe como funciona.”

ATAQUES E QUESTIONAMENTOS

Jair Bolsonaro

Presidente da República

“Até mandei ver quem é o cara que está na frente do Inpe. Ele vai ter de vir se explicar aqui em Brasília. Esses dados aí que passaram para imprensa do mundo todo, que pelo nosso sentimento não condiz com a verdade. Até parece que ele está a serviço de alguma ONG, o que é muito comum (em entrevista no dia 19).” “É o mesmo que um cabo passar uma notícia sem passar pelo capitão, coronel ou brigadeiro. Não está certo (dia 22).”

“O governo não pode ter órgãos aparelhados, como temos ainda, com pessoas que têm fidelidade às ONGs (dia 25)”.

“Alguma coisa aconteceu. E a desconfiança nossa, por aí, que existem dados lá que são alertas. Suspeita de desmatamento é uma coisa, desmatamento é outra (dia 31).”

“Se quebrar confiança vai ser demitido sumariamente, não tem desculpa para nenhum subordinado ao governo divulgar dado com esse peso de importância para o nosso Brasil... Nem na vida particular convivemos com pessoas que perdemos confiança (anteontem).”

PARA ENTENDER

Metodologia data de 2004

Os dados de desmatamento, que estão no centro da queda de Ricardo Galvão, não são divulgados para a imprensa. As informações de alertas do sistema Deter podem ser acessadas no site Terrabrasilis depois que são encaminhadas para o Ibama. Em nota, o instituto disse que “reafirma sua confiança na qualidade dos dados”. Informou que “os alertas são produzidos seguindo metodologia amplamente divulgada e consistentemente aplicada desde 2004” e que “é amplamente sabido que ela contribuiu para a redução do desmatamento na região amazônica”.

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Cientistas do Brasil e do exterior reagem à demissão

Giovana Girardi

03/08/2019

 

 

Especialistas elogiam defesa da transparência feita por diretor do Inpe e veem danos profundos à imagem do País

A exoneração do diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Ricardo Galvão, rapidamente motivou críticas de especialistas na área ambiental. Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências, elogiou tecnicamente Galvão e lembrou que é obrigação dos institutos de ciência e tecnologia transmitirem à sociedade a ciência que produzem. “Informar os dados que têm de modo transparente aumenta a confiabilidade”, disse.

Ao Estado, o especialista em sensoriamento remoto Matthew Hansen, da Universidade de Maryland (EUA), responsável pelo projeto Global Land Analysis and Discovery, que monitora desmatamento em todo o mundo, atestou que os dados do Inpe são precisos. “Dizer que o mapeamento é algo como opinião chega a ser um insulto a todo o trabalho duro que engenheiros e cientistas do Inpe fazem para fornecer dados precisos. O trabalho do Inpe é feito há décadas e avaliado por inúmeros outros pesquisadores independentes, tendo se provado medida altamente confiável das tendências de perda florestal na Amazônia brasileira, gostem dos resultados ou não.”

Hansen disse ainda que “lançar calúnias, como foi feito pelo presidente do Brasil, enfraquece a missão do Inpe”. Segundo ele, nenhuma outra nação tem o mesmo nível de registro de monitoramento de desmate. “Atacá-lo de modo tão abertamente político e irresponsável é, na melhor das hipóteses, desrespeitoso e na pior, perigoso.”

Para Carlos Rittl, do Observatório do Clima, Galvão “selou seu destino ao não se calar diante das acusações atrozes de Bolsonaro ao Inpe”. “Ao reagir, Galvão também preservou a transparência dos dados de desmatamento, ao chamar a atenção da sociedade e da comunidade internacional para os ataques sórdidos, autoritários e mentirosos de Bolsonaro e Ricardo Salles (ministro do Meio Ambiente) à ciência do Inpe”, disse.

‘Trump tropical’. A prestigiada revista científica Nature publicou texto em que diz que o “Trump tropical” (em referência à afinidade de Bolsonaro com o presidente americano Donald Trump) “desencadeia crise sem precedentes para a ciência brasileira”.