O Estado de São Paulo, n. 45964, 22/08/2019. Notas e Informações, p. A3

 

Apologia do abuso de poder

22/08/2019

 

 

Desde que o Congresso aprovou o projeto de lei que criminaliza o abuso de autoridade, tem havido uma saraivada de críticas afirmando que a nova lei seria revanchista, desequilibrada e perigosa para o bom funcionamento da Justiça. Tal oposição não apenas ignora o conteúdo do projeto de lei. As críticas ignoram o fato insofismável de que a nova lei tem uma característica única. É simplesmente impossível que ela seja interpretada enviesadamente, de forma a dificultar a ação dos juízes e procuradores, pela simples razão de que os intérpretes da nova lei serão os próprios juízes e os membros do Ministério Público.

Não faz sentido a alegação de que os crimes previstos na nova lei seriam muito abertos, dando margem a uma criminalização da atividade judicial. Em comparação com a legislação penal vigente, o projeto de lei do abuso de autoridade é bastante preciso. Houve muitas críticas, por exemplo, ao primeiro crime previsto na lei – “decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais” – como se fosse impossível detectar as situações de “manifesta desconformidade”.

Vale a pena refletir sobre tal argumentação. Quando se critica esse tipo penal – que é uma elementar medida de respeito à liberdade de todos os cidadãos, consequência direta de um Estado Democrático de Direito que zela pelas garantias individuais –, a rigor o que se está postulando é que nunca se poderia, com um mínimo de certeza, dizer que numa determinada situação o juiz não tem poderes para decretar a prisão de alguém. Tal crítica é uma insidiosa apologia do abuso de poder, ao afirmar que nunca se poderia detectar, com um mínimo de segurança, um caso de abuso.

Ou seja, o que essas críticas ao projeto de lei afirmam é que nunca uma prisão poderia ser classificada, sem margem de erro, de abusiva – o que é um evidente despautério. O poder do juiz tem limites e, ainda que esses limites em alguns casos não sejam uma linha exata, a margem de poder do juiz não é de um relativismo radical, como alguns pretendem. É parte do saber jurídico indispensável para o exercício da função jurisdicional conhecer os limites do poder.

A crítica ao projeto de lei ignora o fato de que será um juiz a julgar se houve abuso de autoridade na decretação de prisão. Não há risco de que ela seja utilizada para criminalizar a atividade honesta de juízes e promotores. O perigo real é o oposto, de não ser aplicada com o devido rigor.

Mais aberto e passível de interpretações abusivas é, por exemplo, o crime previsto no art. 331 do Código Penal – desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela. Continuamente, todo cidadão está sujeito a ser vítima de uma interpretação abusiva desse tipo penal, sendo, por exemplo, denunciado pelo crime de desacato numa situação de mero exercício da liberdade de expressão. Infelizmente, a esse respeito, não se veem muitos juízes e promotores defendendo uma interpretação mais segura e mais próxima ao texto da lei. E menos ainda protestando contra a própria lei, que pode colocar em risco a liberdade dos cidadãos.

Nas críticas ao projeto de lei sobre abuso de autoridade, observa-se um seletivo rigorismo. Os tipos penais seriam muito abertos, passíveis de más interpretações, expondo juízes e promotores a pressões ilegítimas. Mas não se vê tal rigor sendo aplicado, por exemplo, com o projeto das Dez Medidas Anticorrupção ou com o chamado Pacote Anticrime, proposto pelo ministro Sergio Moro. Fossem utilizados os mesmos pesos e as mesmas medidas, esses projetos – deliberadamente dúbios e amplos, que expõem os cidadãos aos mais diversos achaques – não ficariam em pé. Uma maior igualdade no tratamento da legislação penal e processual penal pode trazer mais racionalidade, equilíbrio e justiça para todo o sistema de Justiça.

O Legislativo foi cuidadoso com o projeto de lei do abuso de autoridade. “As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”, diz o art. 1.º. Ao ignorar o conteúdo aprovado e tecer críticas infundadas, o que se vê é a tentativa de manter a impunidade do abuso de autoridade. Tal desequilíbrio não cabe no Estado Democrático de Direito.

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Muito cedo para pacto federativo

22/08/2019

 

 

Não é hora de negociar um novo pacto federativo. Pode ser mera precipitação do governo. Pode ser uma operação de compra de apoio de governadores, no estilo da nunca abandonada velha política. Em qualquer caso, o ministro da Economia, Paulo Guedes, avança o sinal, perigosamente, ao iniciar essa discussão. Ele já havia mencionado o assunto, há meses, com o slogan “menos Brasília, mais Brasil”, acenando com uma nova divisão de recursos fiscais entre União, Estados e municípios. Ele retoma a conversa, agora, prometendo passar R$ 500 bilhões a entes subnacionais em 15 anos. A conversa inclui, ainda, a repartição da receita prevista de um megaleilão do pré-sal e a desvinculação de receitas orçamentárias.

Todas essas ideias parecem muito atraentes e especialmente oportunas, neste momento, quando a maior parte dos Estados enfrenta enormes dificuldades financeiras. Podem ser muito úteis para os propósitos do governo central, também, se as conversas contribuírem para maior envolvimento dos governadores em projetos como o da reforma da Previdência. Mas a transferência de dinheiro, se mal conduzida, pode também resultar em gastança mal planejada e em maior deterioração das finanças estaduais e municipais.

Esse receio foi claramente exposto pelo secretário especial da Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues Júnior. Segundo ele, será preciso estabelecer condições para evitar maiores gastos salariais custeados com o dinheiro novo, como ocorreu em período recente. Pior, ainda, se gastos correntes forem ampliados e cobertos com recursos ocasionais, porque nesse caso a insegurança fiscal crescerá de forma desastrosa. Nenhum desses perigos é novidade na administração brasileira.

É prematuro falar desse novo pacto federativo quando todos os níveis de governo enfrentam uma severa crise fiscal. Seria prematuro, mesmo sem essa crise, discutir o assunto quando ainda se deve tratar de uma reforma tributária. Qual será o formato final dessa reforma ninguém sabe. Ninguém sabe, por exemplo, como ficarão impostos e contribuições federais, estaduais e municipais. Ninguém pode prever, neste momento, o grau de centralização de receitas. Se houver um grande imposto indireto arrecadado pela União, como será repartido? E se for criada uma versão nova e mais ampla da CPMF?

Discutir pacto federativo sem saber como será o sistema tributário é um evidente desacerto. O governo federal nem sequer explicou direito, até agora, como será sua proposta de reforma. Fontes do Ministério da Economia têm dado informações divergentes sobre o tal imposto sobre transações financeiras (seria mais apropriado, antes de mais nada, falar de movimentação financeira). O presidente da República tem negado, repetidamente, a hipótese de uma recriação da CPMF. O pessoal do Ministério da Economia insiste no assunto. Qual será o resultado?

Alguns temas propostos pelo ministro Paulo Guedes são de fato importantes, mas será preciso discuti-los na hora certa, quando houver condições favoráveis a um debate e a uma negociação mais detalhada e mais ponderada. É preciso, sim, rever as vinculações e desengessar as finanças públicas, mas será preciso incluir o Orçamento federal na mudança. Será bom reexaminar também a divisão de funções entre os níveis de governo.

Mas será igualmente necessário rever as limitações constitucionais, em certos casos, e aperfeiçoar, quando necessário, a Lei de Responsabilidade Fiscal. Será conveniente garantir a todos os níveis de governo a flexibilidade administrativa – em relação aos custos de pessoal, por exemplo – necessária às políticas de ajuste, nos períodos críticos. Mas também será importante impor a governos estaduais e municipais a obrigação de cuidar dos próprios problemas financeiros, sem o sempre esperado socorro do Tesouro Nacional.

Observados pelo menos esses pontos, o novo pacto poderá criar uma verdadeira federação, com maior autonomia e maior responsabilidade para os governos subnacionais. Sem isso, a discussão, além de precipitada, será pouco séria.