O globo, n.31391, 18/07/2019. País, p. 04

 

Reação unificada 

Vinicius Sassine 

André de Souza 

Thiago Herdy 

Juliana Castro 

18/07/2019

 

 

Polêmica. A decisão de Toffoli foi criticada por órgãos de investigação e gera divergência nos colegas de Supremo

A suspensão das investigações com dados compartilhados por órgãos de controle financeiro sem autorização judicial prévia, determinada na terça-feira pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli, uniu em reação as diversas esferas do Ministério Público no país. Um dia depois da decisão monocrática de Toffoli, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge; o conselho nacional de procuradores-gerais dos estados; e as forças-tarefas da Lava-Jato e Greenfield se posicionaram contra o despacho. Eles afirmam que a suspensão põe em risco todas as investigações sobre lavagem de dinheiro no país, fundamental no combate à corrupção e ao crime organizado.

O caso deverá chegar ao plenário do STF em 21 de novembro, mas alguns dos ministros já se posicionaram, em votos ou declarações, sobre o compartilhamento de dados pelos órgãos de controle em outras oportunidades.

Levantamento do GLOBO mostra uma divisão na Corte a partir desses posicionamentos públicos. Quatro dos cinco ministros da Primeira Turma do Supremo, por exemplo, já votaram em dezembro de 2017 pela legalidade da medida. Por outro lado, quatro ministros, incluindo Toffoli, também já criticaram, em maior ou menor extensão, esse tipo de prática.

Em nota, a procuradorageral da República, Raquel Dodge, disse que “vê (a medida) com preocupação” e que estuda recorrer. “A PGR já determinou que a sua equipe analise os impactos e a extensão da liminar para definir providências no sentido de se evitar qualquer ameaça a investigações em curso”.

As forças-tarefas das operações Lava-Jato e Greenfield também divulgaram nota. Em apelo pela reversão da medida, dizem que a decisão favorece a prescrição de crimes

e traz “risco à segurança jurídica do trabalho”. Os procuradores acrescentam que é “inviável identificar imediatamente quantos dos milhares de procedimentos e processos em curso” podem ser impactados.

Para os integrantes da Lava-Jato no Rio, a decisão traz incerteza até para casos já julgados:

— Numa primeira avaliação, essa decisão introduz risco real de termos casos anulados por causa dessa mudança de entendimento — afirma o procurador regional da República Leonardo Cardoso de Freitas.

VOTOS EM 2017

A decisão de Toffoli foi dada em resposta a um pedido do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), investigado pelo MP do Rio por suposto desvio de recursos públicos da Alerj. Um relatório do Coaf identificou movimentações atípicas de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio, no valor de R$ 1,2 milhão.

A medida de Toffoli diverge de entendimento de quatro dos cinco integrantes da Primeira Turma do STF. Em julgamento de um recurso de uma empresa de consultoria contra o MP de São Paulo, em 2017, os ministros Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux rejeitaram os argumentos da investigada, para quem o MP não poderia obter dados do Coaf sem autorização judicial.

Antes disso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo haviam tomado decisões na mesma linha da Primeira Turma.

“A mera solicitação de providências investigativas é atividade compatível com as atribuições constitucionais do MP”, refutou o relator daquele caso, Alexandre de Moraes, acrescentando: “Não há dúvida de que o desrespeito ao sigilo protegido acarretaria violação às diversas garantias constitucionais. Todavia, a inviolabilidade dos sigilos bancário e fiscal pode ser afastada quando eles estiverem sendo utilizados para ocultar a prática de atividades ilícitas.”

O ministro Marco Aurélio Mello foi voto vencido: “Entendo que há reserva do Judiciário e que esse convênio é insubsistente, já que desnuda os dados do cidadão”.

DIVERGÊNCIAS EM 2016

Os votos e posições dos ministros levantados pelo GLOBO ocorreram antes da decisão de Toffoli e nada impede que eles mudem de entendimento. Além de Marco Aurélio e Toffoli, outros dois ministros (Gilmar Mendes e Celso de Mello) já se posicionaram de forma crítica à atuação do MP em casos assim, mas sem detalhar que tipo de restrição imporiam.

O julgamento do processo no qual a defesa do senador fez o pedido seria em 21 de março, mas acabou adiado. A data inicial foi marcada depois da divulgação de uma apuração prévia da Receita sobre o próprio ministro Gilmar Mendes, sua mulher, Guiomar, e a advogada Roberta Rangel, mulher de Toffoli. Em 20 de março, um dia antes do julgamento cancelado, sem antecipar seu voto, Gilmar criticou a Receita:

— Mesmo o fato de eles (fiscais da Receita) terem acesso, isso não significa que devam ter acesso a qualquer informação. Teria que ter dentro de uma atividade funcional. Aparentemente isso é que virou um jogo sem quartel. E, claro, se presta a coisas obviamente indizíveis.

Em 2016, o plenário do STF considerou constitucional a norma que permite à Receita acessar dados bancários sigilosos sem autorização judicial. É uma etapa anterior ao compartilhamento dos dados em posse da Receita com o MP, mas mesmo isso foi criticado pelo ministro Celso de Mello, que votou contra. No mesmo julgamento, os ministros Edson Fachin, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski foram favoráveis aos compartilhamentos de dados com a Receita, mas O GLOBO não encontrou manifestações deles em relação ao repasse de informações ao MP.

“A inviolabilidade dos sigilos bancário e fiscal não é absoluta, podendo ser afastada quando eles estiverem sendo utilizados para ocultar a prática de atividades ilícitas”

Alexandre de Moraes, em julgamento no STF em 2017

“Entendo que há reserva do Judiciário e que esse convênio é insubsistente, já que desnuda os dados do cidadão”

Marco Aurélio Mello, no mesmo julgamento.

A DECISÃO, PONTO A PONTO

1. O que o ministro Dias Toffoli decidiu?

A suspensão de todas as investigações mantidas pelos MPs federal e dos estados, com base em dados compartilhados por Coaf, Receita e Banco Central, sem autorização prévia da Justiça, caso esses dados extrapolem a identificação do titular da operação suspeita e dos montantes movimentados.

2. O Coaf não pode repassar dados sem autorização?

Agora, somente se as informações se restringirem à identificação dos titulares e aos montantes. Toffoli vê risco de anulação de julgamentos se investigações forem feitas com base em dados detalhados compartilhados. Ele afirma que a intimidade e o sigilo de dados são violados nesses casos.

3. Como o STF já se posicionou no tema?

A Primeira Turma já validou em julgamento o repasse de informações da Receita para o MP sem necessidade de autorização judicial prévia. Em 2016, o plenário decidiu, por 9 votos a 2, que a Receita pode receber dados de contribuintes fornecidos pelos bancos sem necessidade de prévio aval da Justiça.

4. Por que a decisão envolve o caso Flávio Bolsonaro?

A decisão de Toffoli foi tomada a partir de um questionamento da defesa do senador, incluída em outro processo similar que questionava a atuação da Receita. Seus advogados dizem que o compartilhamento de dados entre Coaf e MP-RJ extrapolou os relatórios habituais de movimentação atípica, sem autorização.

5 . Há impacto em ações contra tráfico e crime organizado?

Procuradores dizem que a decisão pode travar a maior parte das investigações de lavagem de dinheiro, que costumam ser iniciadas a partir de movimentação detectada pelo Coaf. É comum que crimes como tráfico de drogas e até terrorismo estejam associados à prática de lavagem de dinheiro.

6. Qual a diferença entre um PIC e um inquérito?

O Procedimento Investigatório Criminal (PIC) surge por iniciativa de um promotor de Justiça para apurar possíveis crimes. Pode correr paralelamente ao inquérito policial. Enquanto o PIC é pedido pelo MP, o inquérito é comandado por um delegado de polícia. Um promotor não precisa de aval da Justiça para abrir PIC.