Correio braziliense, n. 20458, 26/05/2019. Política, p. 2

 

Bolsonaro aposta as fichas nas ruas

Leonardo Cavalcanti

26/05/20019

 

 

Manifestações marcadas para hoje são teste de força do presidente, que, mesmo de maneira intuitiva, tenta se voltar para a base em busca de apoios. Risco de desgaste com instituições e com o eleitorado está no cálculo de governistas e oposicionistas

Jair Bolsonaro pode até nunca ter sido apresentado a Max Weber (1864-1920), mas, mesmo de maneira intuitiva, parece ter absorvido o conceito de “democracia plebiscitária”, criada pelo sociólogo. As manifestações previstas para hoje, que têm a assinatura dos principais apoiadores do capitão reformado, são uma espécie de referendo dele mesmo e do governo. Assim como falava o pensador alemão, o presidente faz testes precoces para se sentir legitimado como homem de confiança das massas, tentando ser reconhecido como tal. É como se os manifestantes fossem reforçar o voto no líder contra o Congresso e o Supremo. Porém, os riscos são enormes.

O primeiro, e imediato, está num eventual fracasso relativo da manifestação — há poucas dúvidas de que a mobilização nas redes está alta (leia reportagem na página 3), resta saber quantas pessoas vão aparecer. O segundo e o terceiro riscos podem se materializar mesmo se os protestos tomarem as ruas em favor de Bolsonaro. A questão é que os apoiadores podem estimular ainda mais o racha na base política entre parte dos parlamentares do PSL e do Centrão — mais especificamente o pessoal do DEM, representados pelos presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre. Por último, há o risco de um protagonismo de grupos mais radicais, que abram frentes a favor do fechamento do Congresso e do Supremo.

“Bolsonaro se movimenta de maneira intuitiva, mas é possível ver que ele tem receio de decepcionar os eleitores mais fiéis e passe a ser visto como um líder fraco por fazer acordos com os políticos tradicionais, de certa forma, é isso que o move neste momento”, diz Paulo Kramer, professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB). “Max Weber falava do risco da democracia sem lideranças, pois o sistema seria dominado pelos burocratas, pelo baixo clero. Isso, o presidente sacou, como também sacou o que representariam as manifestações de 2013.” A corda, porém, parece ter sido esticada antes do tempo. “Aí se iniciou o jogo de quem pisca primeiro: Maia ou Bolsonaro”, afirma Kramer. A tensão está na capacidade do presidente em levar o povo à rua.

Desde os protestos de 15 de maio,que mobilizaram 170 cidades brasileiras e da carta anônima divulgada pelo próprio presidente dois dias depois — onde podem ser lidos trechos como “o país é ingovernável fora dos conchavos” — que os aliados de Bolsonaro tentam reagir. E, assim, o presidente foi orientado pela entourage do Planalto a se afastar das manifestações. Mas a estratégia não tinha como dar certo, pois a mobilização começou a ser organizada depois da divulgação da carta divulgada de Bolsonaro e tem como principais apoiadores parlamentares do PSL, o partido do presidente. Assim, seja qual for o resultado de hoje e as consequências políticas do ato, tudo pode ser creditado na conta de Bolsonaro.

“Chapa branca”

A história brasileira tem alguns casos de protestos “chapa branca”, estimulados pelos próprios presidentes para reforçarem apoios. Em 1945, ainda no Estado Novo, Getúlio Vargas acabou favorecido por manifestações favoráveis à permanência do político gaúcho no poder. Um dos casos mais emblemáticos foi o “Comício da Central”, na Praça da República, no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964. Cálculos feitos da época mostram que mais de 150 mil pessoas foram às ruas para ver o presidente João Goulart e o governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola. O contra-ataque da oposição chegou seis dias depois e se prolongou até 8 de junho daquele ano, com uma série de manifestações da “Marcha da família com Deus pela liberdade”. Por último, há o fatídico caso do chamamento de Fernando Collor para as pessoas invadirem as ruas de verde e amarelo. Deu tudo errado — o Brasil se vestiu de preto.

“Esses episódios estão inseridos em momentos de crises extremadas, quando os presidentes tentavam a rua como o último recurso”, diz Carlos Fico, um dos maiores historiadores do país, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Amigo do sociólogo Herbert de Souza (1935-1997), Fico lembra que a sugestão para as pessoas vestirem preto foi de Betinho. “Ele mesmo ficou surpreso com a adesão das pessoas em usarem o preto.” Para o historiador, Bolsonaro cometeu um erro ao estimular e apoiar as manifestações de hoje. “Ele não ganha nada, pois está no poder. O risco, aliás, é muito grande para ele. Foi uma grande bobagem, algo precipitado, com chances reais de reação das instituições e da própria oposição na rua, como ocorreu com as manifestações da Educação.”

Frase

"Bolsonaro se movimenta de maneira intuitiva, mas é possível ver que ele tem receio de decepcionar os eleitores mais fiéis e passe a ser visto como um líder fraco por fazer acordos com os políticos tradicionais”

Paulo Kramer, professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (Ipol/UnB)

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Centrão rechaça o ato

 

 

 

Rodolfo Costa

26/05/2019

 

 

 

Os protestos a favor do governo representam uma aposta de alto risco ao presidente Jair Bolsonaro. No melhor dos cenários, com demonstração de apoio — a depender do volume de manifestantes nas ruas —, a força da gestão bolsonarista continua como está. Com alguma representatividade popular, mas fragilizada em relação ao Congresso. No entanto, no pior dos cenários — com outra baixa adesão de populares —, o isolamento do capitão reformado deve ficar mais evidente e fortalecer o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF), principais alvos dos atos de hoje.

As manifestações são democráticas, mas vistas por congressistas como uma estratégia do governo de jogar os poderes contra o povo. É algo que, historicamente, não dá certo, alerta o deputado Wellington Roberto (PR-PB), líder do partido integrante do Centrão na Câmara. “Se vitimizar e fazer essa queda de braço jogando o Congresso contra a sociedade não é algo que garante a sobrevivência de um governo”, pondera. Sem construir maioria e apresentar uma agenda econômica, a cobrança virá, cedo ou tarde. “O povo não se alimenta de briga e redes sociais. Se o presidente não fizer algo, o caos e o tsunami ao qual se referiu virá.”

A postura da busca pelo confronto feita por Bolsonaro faz parlamentares e especialistas o associarem aos ex-presidentes Jânio Quadros, Fernando Collor de Mello e Dilma Rousseff. O primeiro renunciou e os outros dois sofreram impeachment, respectivamente. O economista e cientista político Ricardo Sennes, sócio-diretor da consultoria Prospectiva, avalia similaridades entres os quatro e o contexto político-econômico: a visão autoritária de interpretar a eleição como mandato de caráter absoluto para impor a própria agenda; fragmentação partidária; crise fiscal; e crise econômica.

A pulverização de partidos e a crise fiscal impõem a Bolsonaro um quadro ainda pior em relação aos outros ex-presidentes. Os dois fatores são agravados pela inflexibilidade no diálogo com o Congresso, a visão autoritária de poderes amplos para imposição da agenda analisada por Sennes. Se não mudar o relacionamento, o governo caminha para uma paralisia decisória crônica, sobretudo quando a reforma da Previdência for aprovada. “O presidente não teria mais uma pauta de convergência com o Congresso”, justifica. O aprofundamento das investigações sobre o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), filho do presidente, poderia, somado a tudo isso, ser o estopim para uma crise maior: a interrupção de mandato.

Interrupção

No início do mandato, a Prospectiva calculava uma probabilidade de 5% de interrupção do mandato de Bolsonaro. Hoje, essa taxa está em 15%. A consultoria fez previsão semelhante em relação à gestão Dilma. A previsão era de que ela romperia com o PT e sofreria impeachment na metade do primeiro mandato. “Dado seu 'DNA' e a natureza do grupo mais próximo a ele, é pouco provável imaginar que dê uma guinada e construa maioria”, explica.

Sem um comportamento político flexível de Bolsonaro, o cientista político e sociólogo Paulo Baía, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), prevê, a médio prazo, em meados de 2020, dois cenários. “Ou ele ‘derrota’ o Parlamento e o Judiciário e abre uma trilha de fazer do Brasil uma Venezuela, como fez Hugo Chávez. Ou o Congresso e o Judiciário ‘derrotam’ Bolsonaro e ele tem o mesmo destino que Jânio, Collor e Dilma”, avalia.

O clima político no Congresso não é propenso ao impeachment. No entanto, no cenário mais pessimista, em que Bolsonaro não renuncia e persiste na relação atual com o Congresso, essa é uma possibilidade vislumbrada no cenário mais pessimista previsto pelo historiador e cientista político José Murilo de Carvalho, professor emérito da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Letras. “Sem entendimento com o Congresso cujos membros foram eleitos como ele o foi, as reformas não virão e sua base de apoio vai murchar, como já está murchando. O cenário para um pedido de impeachment estará criado e, sem base no Congresso, ele poderá ter o destino de Dilma”, sustenta.