O globo, n. 31349, 06/06/2019. País, p. 4

 

Guerra de facções e recorde

Aline Ribeiro

João Paulo Saconi

Bernardo Mello

06/06/2019

 

 

 Recorte capturado

Disputa por rota de drogas faz o país registrar 65 mil assassinatos em 2017

O recorde histórico de 65.602 homicídios no Brasil em 2017 é explicado pela guerra entre as duas maiores facções criminosas do país, segundo o Atlas da Violência 2019, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O número, que equivale a uma taxa de 31,6 mortes para cada cem mil habitantes, representa um crescimento de 4,2% sobre 2016. Na disputa pela hegemonia do tráfico de drogas e armas, integrantes das facções carioca e paulista se mataram como nunca antes.

Os dados são de 2017 porque são os últimos divulgados pelo Ministério da Saúde. Números da pesquisa foram divulgados ontem pela coluna de Ancelmo Gois.

O relatório mostra que o recorde foi puxado pelas regiões do Brasil que mais sofreram com abriga sangrenta, o Nordeste e o Norte. O Ceará despontou como o estado com maior crescimento de homicídios, com alta de 49,2%. Em 2017, uma facção local que ficou conhecida pela crueldade nos atos se consolidou e expandiu.

No Acre, outro estado que puxou o crescimento sem precedentes, a alta nos homicídios foi de 42,1%. Ali, as facções carioca, paulista e uma organização criminosa local se digladiam pelo controle da Rota Solimões, o corredor de escoamento de drogas a partir da tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru.

Dominar a logística dos rios por onde a substância ilícita atravessa garante o acesso a um dos maiores mercados do mundo, uma vez que boa parte da droga consumida na Europa hoje passa por esse caminho. O mesmo fenômeno influenciou os homicídios no Amazonas, que praticamente dobraram em uma década.

A guerra entre as facções paulista e carioca, antes aliadas, começou na cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, divisa com Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul. As duas organizações são acusadas de terem agido em conjunto para assassinar, em 2016, o traficante Jorge Rafaat, conhecido por controlar a fronteira e a droga vinda da Bolívia, Peru e Paraguai.

Nos meses seguintes, no entanto, a cooperação chegou ao fim quando o bando de São Paulo deu início à tentativa de dominar novos mercados varejistas da droga em outros estados brasileiros e esbarrou na facção carioca e suas aliadas regionais. No começo de 2017, a guerra entre as facções eclodiu nas penitenciárias brasileiras e depois nas ruas.

Armas de fogo

Ainda de acordo com o estudo, o número de pessoas assassinadas com armas de fogo cresceu 6,8% no país entre 2016 e 2017. Considerada a série histórica, estima se que quase um milhão de brasileiros perderam a vida por disparos entre 1980 e 2017. Para a equipe responsável pelo Atlas, o número seria ainda maior não fosse a aprovação do Estatuto do Desarmamento, em 2003.

Segundo os organizadores do Atlas, as despesas com seguranças pessoal e pública equivalem acerca de 6% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil — de R$ 6,6 trilhões em 2017.

O Atlas abordou pela primeira veza violência contra a população LGBTI. Segundo dados do Disque 100, aumentou em 127% o total de denúncias de homídio contra apo pulação LGBTI. Foram 193 casos em 2017. Denúncias por lesão corporal aumentaram em 53% (de 275 para 423 casos).

Também há informações novas sobre a violência contra mulheres e negros. Segundo o estudo, houve 4.936 homicídios femininos em 2017, ano que registrou uma média de 13 assassinatos de mulheres por dia . O índice representa um crescimento de 30,7% em relação a 2007.

Para cada quatro vítimas de homicídios em 2017, três eram pessoas negras. A taxa de assassinatos de negros cresceu 33,1% em uma década, cerca de dez vezes mais do que a taxa de homicídios de não negros.

O Atlas da Violência apresenta ainda um quadro preocupante relacionado às mortes de jovens (entre 15 e 29 anos). Em 2017, 35.783 jovens foram mortos, taxa de de 69,9 homicídios para cada 100 mil jovens no país, recorde nos últimos dez anos.

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Para especialistas, queda recente mostra ‘instabilidade’ na segurança

Bernardo Mello

06/06/2019

 

 

Embora tenha apresentado crescimento em 2017, as taxas de homicídio vem caindo no Brasil este ano. O número de assassinatos teve queda de 24% no Brasil no primeiro trimestre, segundo o Monitor da Violência do G1, que tem como base dados dos governos estaduais e não do Ministério da Saúde, como o Atlas da Violência, do Ipea.

Estudiosos de segurança pública avaliam que a redução nas taxas explica-se pelo esfriamento da guerra de facções criminosas que explodiu há dois anos, principalmente nas regiões Norte e Nordeste, apontado como o principal indutor da queda. O Ceará, estado que registrou o maior aumento da taxa de homicídios no país (48,2%) em 2017, reduziu em 57% o índice de mortes violentas neste ano, segundo o G1.

Luiz Fábio Paiva, do Laboratório de Estudos da Violência (LEV) da Universidade Federal do Ceará, pondera que a queda recente não significa que as raízes da última onda de violência foram sanadas.

—O que temos são projetos de governo que não atacam as condições sociais da violência. Isso tudo faz com que a instabilidade seja a realidade da segurança pública — disse.

Renato Sérgio e Lima, presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, concorda que os dados de 2017 representamo“apogeu” de uma crise de segurança que arrefeceu a partir de 2018. Lima alerta, no entanto, para discrepâncias entre estatísticas do Ministério da Saúde —que servem de base para o Atlas — e números do Ministério da Justiça no mesmo período. Estados como Amazonas e Bahia chegam a apresentar diferenças de mais de 400 vítimas entre as duas bases.

— Acredito na queda dos homicídios, mas talvez não tenha sido tão intensa —diz.

Ivan Marques, presidente do Instituto Sou da Paz, vê ações integradas entre estados e governo federal por trás da redução. Marques pede atenção às particularidades dos estados. No Sudeste, São Paulo e Minas Gerais tiveram queda de homicídios em 2017, enquanto o Rio viu os números subirem. Já este ano, os municípios fluminenses tem apresentado queda nos índices.

—Ceará, Pernambuco e Rio Grande do Norte respondem pela maior parte da redução, mas isso não significa tendência de queda. —observou.