O globo, n. 31351, 08/06/2019. Economia, p. 17

 

Ajuda de peso

Janaína Figueiredo

Rennan Setti

Bernardo Mello

08/06/2019

 

 

Moeda única seria bem-vinda na Argentina às vésperas da eleição

A proposta de criação de uma moeda única para Brasil e Argentina, citada pelo presidente Bolsonaro, é vista com entusiasmo pelo país vizinho, cuja unidade monetária sofreu seguidas desvalorizações no governo Macri. No entanto, o projeto do “peso real” foi criticado por economistas e alvo de piadas nas redes sociais.
Apoucos meses da eleição presidencial argentina, em outubro, e durante a visita do presidente Jair Bolsonaro ao país, surge o anúncio do plano de criação de uma moeda única para Brasil e Argentina, que seria o “peso real”. Analistas, no entanto, mostram ceticismo e ressaltam que tal processo, inspirado no euro, é complexo e demanda tempo. O GLOBO apurou, junto a fontes, que as conversas, na verdade, começaram há pelo menos dois meses —e por trás estaria a preocupação do presidente Maurici o Ma cr ide melhorar sua ima geme, consequentemente, suas chances de reeleição. Ele está em baixa nas pesquisas e vê o avanço da candidatura (como vice) da senadora e ex-presidente Cristina Kirchner. Uma das primeiras conversas
entre interlocutores dos dois países sobre o “peso real” ocorreu nos Estados Unidos, durante uma reunião no Fundo Monetário Internacional. A ideia foi apresentada pelo governo brasileiro. Inicialmente, o lado argentino não se interessou. Mas em abril, com uma nova desvalorização do peso, o ministro da Fazenda argentino, Nicol ásDujovne, veio ao Brasil para se reunir com o ministro da Economia, Paulo Guedes. Segundo fontes, o pedido de Dujovne era claro: avançar no projeto da moeda comum e anunciar essa decisão publicamente o mais rápido possível. Nãoéa toa. Com as seguidas desvalorizações da moeda, no início do governo Macri, um dólar era equivalente a 15 pesos. Hoje, vale 45 pesos.
— Para o governo, esse anúncio serve para recuperar o protagonismo no debate econômico no momento em que a economia é um dos pontos fracos do governo e as eleições estão chegando. Seria proveitoso para Macri, nos meses que antecedem a campanha, que se discuta a conveniência ou não de um acordo dessa natureza, que é disruptivo, e não o fracasso da política monetária e do controle da inflação — afirmou o economista Martin Tetaz, pesquisador da Universidade Nacional de La Plata.

'Aventuras socialistas'

Bolsonaro voltou afalar na proposta ontem, afirmando ainda que amoeda única poderia ser ampliada para toda a América do Sul. Isso, disse, poderia ser uma “trava em aventuras socialistas”. — Uma família começa por duas pessoas. A relação começou na Argentina, e gostaria que outros países se preocupassem com isso também. Quem sabe fazer uma moeda única para a América do Sul? —disse, após evento no Rio .— Temos mui tomais a ganhar do
que a perder. Acredito que isso nos dá uma trava em algumas aventuras socialistas que aconteceram por aqui. Com relação a Macri, Bolsonaro afirmou:
— Não fui à Argentina para fazer campanha. Mas me preocupo, sim, com um retorno de Cristina Kirchner. Pedi aos argentinos que votem coma razão, não coma emoção, e
abandonem os populismos. Essas conversas entre os dois países nunca foram reveladas. Mas, na visita de Bolsonaro à Argentina, Guedes comentou a proposta em um encontro com empresários locais. Ele sempre defendeu a redução de moedas fortes no mundo e considera que uma moeda comum na América do Sul seria interessante alongo prazo.
Seu tom, segundo fontes presentes no evento, foi cauteloso: Guedes ressaltou ser um projeto para o futuro. M aspara os empresários argentinos, que enfrentam uma forte recessão, foi, nas palavras de um deles, “como ver uma luz no fim do túnel”.
No fim da noite de quinta feira, o BC divulgou nota explicando que as conversas entre os dois países são incipientes. Segundo fontes, anota foi redigida às pressas, para evitar reações precipitadas. Economistas brasileiros criticaram a proposta e disseram que vai na contramão da postura em relação ao Mercosul, que vinha sendo tratado em segundo plano.
— Tratado da maneira leve como foi, parece um factoide. A construção do euro demorou décadas. Para se cogitar uma moeda comum, o primeiro passoéau mentara integração econômica — disse Luiz Carlos Prado, professor do Instituto de Economia da UFRJ e especialista em economia internacional. Ele ainda considera que seria necessária uma mudança de estratégia do governo, que vinha afirmando que o Mercosul não era prioridade.
— É um tema inconveniente, tão complexo quanto inútil, que não sabemos de onde saiu e não faz sentindo diante dos problemas urgentes que temos, como desequilíbrio fiscal e estados quebrados — disse o economista Luis Eduardo Assis, ex-diretor de Política Monetária do Banco Central.

 

'Um baita de um avanço'

Para o economista argentino Amilcar Collante, do Centro de Estudos Econômicos do Sul, o anúncio foi apressado: — Em um ano eleitoral, o ciclo do noticiário é ainda mais intenso. Em uma semana, ninguém mais se lembrará da visita de Bolsonaro. Essas notícias podem nos distrair, mas só por alguns dias. Marcos Buscaglia, sóciofundador do Alberdi Partners em Buenos Aires, lembrou que o anúncio sequer teve impacto nos mercados. O vice-presidente Hamilton Mourão, porém, considera a ideia “um baita de um avanço” se for factível. Perguntado sobre as críticas do presidente da Câmara, Rodrigo Maia — que, em rede social, questionou se uma moeda única levaria a um dólara R$6 e hiperinflação —, Mourão respondeu: —Mas isso é uma coisa embrionária, né?