Valor econômico, v.20, n.4804, 31/07/2019. Política, p. A10

 

Bolsonaro diz que documentos da CNV são uma "balela"

Carla Araújo 

Mariana Muniz 

31/07/2019

 

 

Um dia após dizer que poderia contar ao presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, sobre o desaparecimento do pai dele durante a época da ditadura, o presidente Jair Bolsonaro contestou ontem o trabalho da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Para ele, os documentos oficiais sobre mortos pela ditadura são "balela". Bolsonaro também voltou a fazer críticas à entidade de advogados supostamente por proteger os mandantes da facada que levou durante a campanha.

"Você acredita em Comissão da Verdade? Qual foi a composição da Comissão da Verdade? Foram sete pessoas indicadas por quem? Pela Dilma [Rousseff]", disse Bolsonaro, na porta do Palácio da Alvorada, ao ser questionado sobre as declarações de que Fernando Augusto Santa Cruz de Oliveira teria sido morto pela esquerda, o que contraria a versão da Comissão da Verdade.

O ministro aposentado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp, primeiro coordenador da Comissão, rebateu as declarações de Bolsonaro e disse que o colegiado foi criado através de uma lei federal, inclusive com a participação das Forças Armadas. "A Comissão Nacional da Verdade foi criada por lei federal após amplo debate, com a participação de diversos atores da sociedade, inclusive das Forças Armadas", disse Dipp ao Valor, que classificou de absurdo o fato de o presidente colocar em xeque os trabalhos do colegiado.

"Bolsonaro não poderia dar tais declarações especialmente porque, enquanto presidente da República, é também o comandante em chefe das Forças Armadas. A Comissão Nacional da Verdade foi uma comissão de Estado, não uma comissão de governo", afirmou.

A Comissão foi instalada em 2012 por meio da Lei 12528/2011 com o intuito de investigar violações aos direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. Seu relatório final foi entregue em 2014.

Bolsonaro rebateu ainda que possam existir documentos sobre a morte de Santa Cruz e afirmou que "a questão de 64 não existem documentos de matou, não matou, isso aí é balela". "Você quer documento para isso, meu Deus do céu. Documento é quando você casa, você se divorcia. Eles têm documentos dizendo o contrário?", disse.

Questionado se contestaria oficialmente as informações da comissão sobre a morte de Santa Cruz, o presidente disse: "Quem sabe." "Quem sabe a gente possa. Não é contestar, agora se gastou R$ 5 bilhões, dinheiro público do povo que trabalha, para quem nunca trabalhou. Não pretendo mexer no passado, pretendo respeitar a lei da anistia de 79, esse é o meu sentimento, acho que tem que ser respeitado", afirmou

Santa Cruz desapareceu durante o Carnaval de 1974, no Rio, junto com um amigo, Eduardo Collier Filho. Líder estudantil, ele integrou os movimentos Ação Popular (AP) e Ação Popular Marxista Leninista (APML). Segundo relatório da Comissão, Fernando era casado, "tinha vida absolutamente legal e era funcionário do Departamento de Águas e Energia Elétrica, em São Paulo, onde morava com a mulher e Felipe, então com dois anos" à época do desaparecimento. Não há menção à participação dele na luta armada contra o regime militar. Em depoimento prestado à CNV em 2014, o ex-delegado do Dops Cláudio Guerra confirmou que Eduardo e Fernando teriam sido levados para a chamada "Casa da Morte", em Petrópolis (RJ), um lugar de execuções, e, de lá, seus corpos teriam sido transportados, por ele, para serem incinerados na Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes (RJ).

Anteontem, o presidente da OAB chamou de "deboche" as declarações do presidente e informou que vai entrar no Supremo Tribunal Federal (STF) com um pedido de explicações para que Bolsonaro diga o que sabe a respeito do desaparecimento de seu pai. O pedido de interpelação deve ser apresentado hoje.

"Um dia se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Conto para ele", disse o presidente.