​Valor econômico, v. 20, n. 4781, 28/06/2019. Especial, p. F4

 

 

Avanço depende de pressão da sociedade

 

 

 

 

 

Roseli Loturco

28/06/2019

 

 

 

Marc Fleurbaey: "Temos que criar movimentos de pressão aos governos, pois cooperação internacional não vai bem"

 

Escandinávia como modelo de transformação social. Com economias abertas e descentralizadas, em que trabalhadores e empresas enfrentam a redução de desigualdades sociais com a adoção de medidas que vão além do pagamento de bons salários, e que passam também por políticas públicas e programas universais. A realidade vivida pelos países nórdicos como Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia, Islândia e Ilhas Faroe é tida como exemplo a ser seguido pelo resto mundo pelo professor Marc Fleurbaey, da Universidade de Princeton.

"Mas tudo isso só se conquista quando a sociedade civil age e pressiona governos e instituições de forma organizada", afirma. Para ele, especialmente os países da América Latina (AL) e África deveriam redefinir suas estruturas organizacionais, pois há um abismo entre os mais ricos e os mais pobres, com exclusões e níveis de miséria elevados e que vêm aumentando nos últimos anos. "A situação nessas regiões é bastante crítica e gera também crise política, com abertura para o aparecimento de populistas. A ruptura de cooperação entre os países agrava ainda mais tudo isso", diz Fleurbaey.

O professor, que faz parte de um grupo de 300 autores interdisciplinares de 40 países, lançou, recentemente o livro 'Manifesto para o Progresso de Ideias para uma Sociedade Melhor', que reúne o Relatório para o Século XXI, primeiro estudo internacional a propor medidas a serem tomadas para o progresso, inclusão social e defesa das democracias no longo prazo. O Brasil participou dessa formulação, que levou cinco anos para ser concluída.

O manifesto indica que as organizações não governamentais (ONGs) devem ser fortalecidas e o surgimento de movimentos como o dos Camisas Amarelas, na França, onde não há lideranças, devem ser observados com atenção. "Temos que criar movimentos fortes para pressionar os governos, pois a cooperação internacional não vai bem. Preparar pessoas com forte base educacional contribui com o mercado, mas desde que ele não seja altamente concentrado", afirma Fleurbaey.

As mudanças no mercado de trabalho com o aparecimento de novas tecnologias e a existência de cerca de 3 milhões de robôs no mundo também impõem a remodelagem nas relações profissionais, com aquisição de novas habilidades e competências.

"Não é um modelo ocidental que temos que seguir, mas sim o de maior inclusão" Marc Fleurbaey, professor da Universidade de Princeton

"Não é muito, mas cresce exponencialmente a quantidade de robôs que mexem com a vida e o comportamento das pessoas todos os dias." Tudo isso acontece justamente em um momento em que os sindicatos estão enfraquecidos, há alta concentração de poder nas mãos de algumas empresas, a corrupção aumenta e, para ele, as estruturas democráticas podem ser lentamente minadas na AL. "Com a globalização, tudo vai além das fronteiras dos países. Hoje, das 100 maiores empresas do mundo, 60 são mais fortes do que seus Estados. E isso é grave."

Nesse sentido, o relatório aponta para metas e ações que podem ser adotadas e como as organizações sociais devem agir para a proteção de leis, da democracia, do meio ambiente, das redes sociais e da mídia, que diz exercer papel fundamental em um país que busca a transformação socioeconômica e a universalização de sistemas educacionais e de saúde. "Não é um modelo ocidental que temos que seguir, mas sim o de maior inclusão. Dar as pessoas condições de pertencimento e interferência. E a educação dá capital humano para isso", diz.

Maria Alice (Neca) Setubal, presidente da Fundação Tide Setubal, concorda com as direções apontadas pelo estudo. "É importante discutir as questões nacionais em nível internacional, tangenciando com outras experiências. Falar em democracia no Brasil nos remete à Constituição de 88, quando se buscou equalizar a inclusão com equidade, movimentos sociais e pluralidade", avalia.

Para ela, existem dois eixos para fortalecer a sociedade em momentos de crise, por meio do estímulo às organizações nas periferias e ligadas a seus territórios de convívio. "Assim dá para ampliar o diálogo com as instituições de interesse e criar pontes em momentos tão adversos como o que enfrentamos", afirma Maria Alice Setubal.

Nesse contexto, pensar no bem-estar coletivo em detrimento do individual é urgente no Brasil de hoje, um país politicamente polarizado. É o que defende Marlova Jovchelovitch Noleto, diretora e representante das Organizações das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco). "Em 88 a Constituição foi chamada de Constituição Cidadã e traz no seu artigo 5º os direitos sociais e fundamentais como de seguridade social, de educação e saúde pública. Assim como Estatuto da Criança e do Adolescente com conquistas que não podemos perder", alerta Marlova. "A Agenda 2030 da ONU também se compromete com esses direitos, em que crianças e jovens têm que ter igualdade de oportunidades e as organizações têm que ajudar o Brasil a pensar como combater as desigualdades com equidade", afirma.