O globo, n. 31313, 01/05/2019. Artigos, p. 3

 

Um governo do contra

Ricardo Rangel

01/05/2019

 

 

Na semana passada, a reforma da Previdência foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Ainda que sem brilho (a proposta demorou oito semanas para passar, enquanto a de Temer passou em apenas uma), foi uma vitória importante, mas ofuscada pela série de brigas em que o governo se meteu.

Ao publicar um vídeo em que Olavo de Carvalho diz, entre outros impropérios, que “os milicos só fizeram cagada”, Bolsonaro comprou briga com os militares. O vídeo foi apagado, e o presidente soltou nota afirmando que as declarações do guru “não contribuem para a unicidade de esforços e consequente atingimento dos objetivos” do governo, mas o assunto não está superado.

No mesmo dia em que o governo mostrou com unicidades e atingimentos como é culto, o ministro Osmar Terra anunciou um corte de 98% no teto para projetos culturais. Não explicou qual seu objetivo nem como a medida contribuirá para seu “atingimento”. Comprou briga com artistas e com a gente de cultura.

Na quarta-feira, soube-se que quem publicou o tal vídeo do guru foi Carlos Bolsonaro, e que isso redundou em uma briga com o pai. Magoado, Carluxo parou de atender aos telefonemas do presidente e sequestrou sua senha, impedindo-o de soltar tuítes. Jair Bolsonaro chegou a cancelar um café da manhã com a imprensa, mas voltou atrás.

No encontro, Bolsonaro afirmou que “o Brasil não pode ser um país de turismo gay: temos famílias” (é preciso avisar ao presidente que gays também têm famílias). Concluiu dizendo que estamos de braços abertos para o turismo sexual (desde que heterossexual). Comprou briga com a comunidade LGBT, suas famílias e todos os brasileiros razoáveis.

No mesmo encontro, o presidente afirmou que se a reforma da Previdência ficar abaixo de R$ 800 bilhões, “o Brasil ficará em situação parecida com a da Argentina”. Ao dar a senha para que os deputados sangrem a reforma — o delegado Waldir, líder do partido do presidente, já disse que vai apoiar três (!) emendas que desidratam a proposta — comprou briga com a equipe econômica.

Em seguida, descobriu-se que Bolsonaro vetou um comercial do Banco do Brasil e mandou demitir seu diretor de marketing: a presença de negros, pessoas tatuadas e uma transexual ofendeu o presidente, que decidiu que a publicidade das estatais agora deve ser controlada pela Secom. Comprou briga com Deus e o mundo.

O ministro Santos Cruz avisou que a medida é ilegal (Carluxo, claro, já começou a atacá-lo), mas Bolsonaro insiste, porque acha que “a massa quer o respeito à família”: não explicou por que acha que é seu papel ser fiscal de costumes nem o que há de desrespeitoso no comercial que censurou. (Bolsonaro tampouco se dá conta de que comete abuso de poder, o que, pela Lei do Impeachment, pode até ser considerado crime de responsabilidade: se algum dia o Brasil tiver uma oposição, talvez venha a lhe agradecer pelo passo em falso.)

Na sexta, Bolsonaro anunciou que o governo deve “descentralizar” recursos para áreas de humanas, como filosofia e sociologia. Considerando-se que o único contato do presidente com filosofia é Olavo de Carvalho, até dá para entender — mas não para concordar e ele comprou briga com a academia inteira, de humanas ou não.

O que é mais marcante nas ações do governo é que elas são contra alguma coisa, raramente a favor . O governo hostiliza, censura, asfixia, agride. Seus integrantes se maldizem, se acusam, se desautorizam mutuamente. Mesmo os melhores projetos, como a reforma da Previdência e o pacote anticrime são contra : o governo quer cortar o déficit, mas não sabe o que fazer com o dinheiro que vai sobrar; quer torna as punições mais duras, mas não aposta na prevenção à violência.

Quem não tem projeto de país nem de governo não sabe a favor do que lutar: luta contra tudo e contra todos, e principalmente contra si mesmo. Não admira que a reforma da Previdência ande tão devagar.