Valor econômico, v. 20 , n. 4766 , 06/06/2019, Legislação & Tributos, p. E2

 

Integridade na contratação pública

Caio de Souza Loureiro

06/06/2019

 

 

Os recentes movimentos de combate à corrupção levaram à busca por melhoria na integridade nas licitações e contratações administrativas. Tenta-se evitar a repetição de ilícitos do passado donde se destacam iniciativas legislativas recentes, que buscam estimular a adoção de programas de integridades por aqueles que contratam com a administração.

O movimento mais recente foi dado pelo último substitutivo apresentado ao Projeto de Lei 1292/1995, que altera a legislação de licitações e contratos administrativo. Consta que, nas contratações de grande vulto (acima de R$ 200 milhões), "o edital poderá prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor, no prazo de 6 (seis) meses contados da celebração do contrato".

O PL 1292 segue, assim, o caminho iniciado com a Lei nº 7.753/17, do Estado do Rio de Janeiro, pioneira ao demandar a apresentação de programas de integridade dos contratados pela administração fluminense (em contratos de determinados valores e prazos mínimos). Também o Distrito Federal editou lei semelhante (Lei nº 6.112/18).

Contudo, tal qual esses antecedentes, o PL 1292/1995 evidencia pouco apuro do legislador em tratar de um tema tão complexo. Na prática, previsões dessa ordem podem, longe de fomentar a integridade, impor obrigações irracionais e até mesmo estimular atos ilícitos nas licitações e contratos.

Ao contrário do que pode parecer, um programa de integridade não é suficiente para atestar a adoção de práticas efetivas de combate à corrupção. É preciso averiguar a eficácia dos seus elementos, seja em termos conceituais (regras e políticas) seja na aplicação concreta (treinamentos, apuração, auditorias etc.).

Não é irrelevante a preocupação com a qualidade desses programas. Ter um código de ética passou a ser lugar comum nas organizações, que, não raro, é mero documento formal, que reflete pouco da realidade de cada empresa e que carece de eficácia na prevenção e combate de atos ilícitos nas suas atividades.

O maior indicativo das insuficiências dos programas de integridade é dado pelos resultados do "Pró-Ética", iniciativa da Controladoria-Geral da União e de entidades privadas, que anualmente avalia os programas que são submetidos por empresas interessadas na obtenção do selo "Empresa Limpa". Em 2017, por exemplo, dos 171 programas avaliados, apenas 23 foram aprovados.

A tarefa de avaliar a qualidade do programa de integridade também não é simples. Demanda conhecimentos específicos e um tempo mínimo para o exame da documentação relevante. Parece inviável a presunção de que agentes públicos encarregados da gestão de licitações e contratos tenham a capacitação suficiente à avaliação de programas e que consigam realizar essa função em tempo hábil.

Daí porque o resultado mais provável das iniciativas legislativas que forcejam a adoção de programas de integridade nas contratações administrativas tende a ser meramente formal. À míngua das condições necessárias à avaliação dos programas, o mais provável é que programas sejam aceitos mesmo sem qualquer avaliação da sua eficácia.

Ainda, previsões dessa ordem podem induzir a prática de atos ilícitos na avaliação dos programas de integridade apresentados. Sem parâmetros objetivos de avaliação, há ampla margem para que empresas ou agentes públicos mal-intencionados se aproveitem para malversar a aceitação ou recusa dos programas apresentados. Portanto, a obrigação de programas de integridade pelos contratados da administração pública não parece ser a melhor alternativa. Mais relevante nesse propósito parece ser incentivar a adoção de programas de integridade pela administração, até hoje carente de regras e procedimentos que previnam ilícitos nas licitações e contratos.

Iniciativas dentro das entidades governamentais podem ser um avanço representativo da integridade das licitações e contratações. A introdução de práticas já internalizadas nas empresas que adotaram políticas efetivas de integridade é um passo importantíssimo: realização de auditorias, treinamento, canais de denúncia e regras de transparência ainda são escassas nos órgãos e entidades governamentais, cuja atuação é controlada majoritariamente a posteriori, sem muita preocupação com prevenção de ilícitos.

Além disso, o gestor público do contrato concentra muito poder, mandatado que é para o exercício da extensa pauta de prerrogativas contratuais da administração. Essa exorbitância, sob à égide de contemplar o interesse público, acaba sendo um campo fértil à prática de ilícitos seja pelo agente público improbo, seja pelo particular. Partir de uma relação mais equânime entre a administração contratante e o particular contratado pode ser providência mais útil ao estímulo da integridade nas contratações administrativas.

De tudo isso, não é questionável a boa intenção do legislador quando se ocupa de obrigar a adoção de programas de integridades pelos contratados pela administração. No entanto, as iniciativas até então adotadas parecem indicar uma busca precipitada em atender a uma justa demanda da sociedade, sem, contudo, enfrentar de fato a questão. O maior problema não é a inocuidade dessas medidas, mas a perda de oportunidade em pensar e discutir medidas que, conquanto demandem maior tempo para implantação, podem alcançar resultados mais efetivos.

 

Caio de Souza Loureiro é sócio do Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados, doutorando em Direito de Estado pela USP e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP.

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