Valor econômico, v.19 , n. 4643 , 05/12/2018. Legislação & Tributos, p. E2

 

A ética no DNA das empresas

Roberto Di Cillo

05/12/2018

 

 

Mudanças legislativas são necessárias, mas às vezes. Nos últimos 30 anos após a edição da Constituição Federal, o Brasil foi testemunha de iniciativas legislativas como reações a situações de corrupção envolvendo diversos atores dos setores privado e público.

Começando em 1992, o Brasil recebeu com bastante ceticismo a lei de improbidade administrativa, sancionada pelo ex-presidente Fernando Collor, logo em seguida declarado impedido pelo Congresso. Em linhas gerais, aquela lei tratou de situações de corrupção em que agentes públicos se enriquecessem ilicitamente, causassem danos ao erário (inclusive aos cofres de estatais e sociedades de economia mista) ou violassem princípios da administração, com a participação de agentes privados, inclusive empresas.

As sanções para cada violação, num diploma legal bastante carente de precisão, não eram tão frequentemente aplicadas. Mas com o passar do tempo a jurisprudência foi se consolidando, com um papel relevante do Ministério Público, e aquelas sanções passaram a ser aplicadas com alguma consistência.

Os anos passaram e, no tema do combate à corrupção, vieram alterações legislativas importantes, para as pessoas físicas num primeiro momento, decorrentes de acordos internacionais assinados pelo Brasil, com as sanções penais de praxe, inclusive privativas de liberdade.

Mais alguns anos adiante, com pressão externa para que o Brasil se tornasse um ambiente mais seguro juridicamente, uma proposta de lei foi apresentada ao Congresso, tendo se transformado numa imperfeita lei de sancionamento de empresas envolvidas em esquemas de corrupção, a Lei nº 12.846/13.

Qual era o foco dela? Licitações e contratos administrativos, com certeza, num contexto de necessidade de atração de investimentos externos e, por que não, de construção de imagem de estabilidade que talvez terá contribuído para, por exemplo, a capitalização da Petrobras em 2010, num momento crucial para aquela empresa.

No mesmo contexto da edição da Lei nº 12.846/13 após os protestos populares daquele ano, veio também a Lei nº 12.850/13, que consolidou a questão das colaborações premiadas. Nada disso é ou deveria ser novidade.

Numa linha do tempo, as sanções para quem, pessoa física ou jurídica, violasse normas anticorrupção passaram, em grande medida, de sanções punitivas, como castigos, para sanções premiais, em que se criaram incentivos de boa conduta. Porém, alguns se indagam ou deveriam se indagar se algo realmente mudou na ética pessoal de cada cidadão.

A indução de uma mudança de ética pessoal em caráter permanente dificilmente será conseguida pela imposição por lei, decreto ou portaria, ainda mais numa sociedade politicamente dividida e culturalmente diversificada como a brasileira. Imposições (ou seja, medo) tendem a ter resultados efetivos no curto prazo, mas a durabilidade desses resultados precisa estar associada a medidas adicionais, sob pena de ineficácia e mesmo de criar efeitos colaterais indesejados, como a inibição da concorrência, por exemplo.

Ainda que as sanções premiais já introduzidas no direito brasileiro tenham promovido uma verdadeira mudança de comportamentos imediatos, permitindo a devolução à Petrobras de bilhões de dólares, algo impensável no passado, há falhas sistêmicas e conceituais que podem minar a continuidade dos enormes esforços já dispendidos.

Como a cada ação costuma corresponder uma reação, os incentivos atuais à adoção de programas de integridade por empresas de quaisquer portes e capacidades econômicas esbarram em questões práticas de difícil resolução por lei, decreto ou portaria. Basicamente, ainda existe uma cultura do "cumpra-se", pois a adoção desse tipo de programa é vista como obrigação prática para diminuir multas e outras sanções aplicáveis em tese a empresas de quaisquer portes e em quaisquer setores da economia, dentro de um sistema de responsabilidade objetiva que emite mais medo do que promove uma alteração de cultura ética necessariamente.

A implementação de um programa de integridade pro forma e goela abaixo pode sair pela culatra, dada a resistência até inconsciente de quem, em vários níveis da organização, precisa contribuir para alterar o padrão de ética empresarial, com um potencial nocivo para geração de novas formas de fraude e corrupção, de difícil detecção. E não vai adiantar criar mais uma lei para combater os males relativos à corrupção empresarial, eis que leis, decretos e até portarias e normas de empresa são, em geral, genéricos.

A "lei" para casos específicos precisa ser objeto de acordo entre os interessados, inclusive empregados, dentro do "pacta sunt servanda", do direito romano, que pode ser traduzido como "o contrato faz lei entre as partes", não contando contrato de adesão imposto pelo empregador!

A economia brasileira é movida, como muitas outras, por médias, pequenas e microempresas, inclusive MEIs, que enfrentam maior escassez de recursos, inclusive financeiros e de mão-de-obra, do que as grandes, cujos criadores ou atuais sócios e administradores estão preocupados, naturalmente, com a sobrevivência do negócio, às vezes a qualquer custo. Que custo? O de subornar alguém? Mas e quando forem achacados? A responsabilidade de empresas por corrupção é objetiva, não importando se houve achaque.

A participação do Estado, mais como fomentador de mudanças do que algoz, é urgente e necessária para promover uma verdadeira mudança de paradigma ético no DNA das empresas, que é o DNA das pessoas que as formam, quer sócios, administradores, empregados, contratados e subcontratados.

Algumas das pessoas, inclusive, podem merecer uma segunda chance, ainda que precisem ser afastadas do dia a dia dos negócios, em casos justificados, como já prevê a legislação penal aplicável a elas. E, mais do que a punição, o diálogo, nesse contexto, será essencial para validar a percepção de problemas e a propositura de soluções eficazes.

Sem medidas efetivas no combate à corrupção com o uso de empresas de todos os portes há o risco de que o discurso de campanha se perca no vazio.

 

Roberto di Cillo é advogado e professor da disciplina de regime sancionador anticorrupção brasileiro da pós-graduação em compliance no IBMEC

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações