Correio braziliense, n. 20437, 05/05/2019. Mundo, p. 14

 

Duelo de gigantes na vizinhança

Jorge Vasconcellos

05/05/2019

 

 

América do Sul » Escalada da crise na Venezuela coloca a região, pela primeira vez, como cenário de um confronto direto entre os Estados Unidos, que se movimentam para afastar do poder Nicolás Maduro, e a Rússia, aliada política e comercial do regime chavista

A recente troca de agressões e ameaças entre Estados Unidos e Rússia, no contexto da crise venezuelana, sinaliza que a América do Sul pode ter se transformado, pela primeira vez, em arena de confrontação entre as duas maiores potências nucleares do planeta. O apoio de Moscou ao regime de Nicolás Maduro e o respaldo de Washington ao opositor Juan Guaidó — proclamado presidente interino pela Assembleia Nacional — estão no centro do mais novo conflito entre os ex-contendores de meia década de Guerra Fria. Na disputa atual, o ponto alto das tensões foi a advertência do ministro russo das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, de que uma eventual intervenção militar americana contra Maduro “teria sérias consequências”.

Os embates entre as duas grandes potências, historicamente, tiveram palco em outros cenários geopolíticos, distantes da América do Sul — com exceção da crise dos mísseis, que teve Cuba como pivô, em outubro de 1962. Desta vez, as reiteradas ameaças dos EUA de que “todas as opções estão na mesa” para a solução da crise venezuelana, incluindo o uso da força, obrigaram a Rússia a cumprir o papel de principal contraponto aos interesses americanos no cenário internacional.

“Agora, estamos vendo essa grande mudança em relação aos interesses de segurança dos países da América do Sul, que é uma confrontação de potências mundiais na nossa porta, o que é extremamente preocupante”, disse ao Correio o professor Juliano da Silva Cortinhas, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (Irel/UnB).

“A Rússia é o país que desafia os EUA de forma mais direta em muitas regiões do sistema internacional. Temos o caso da Crimeia, anexada por Moscou há cinco anos, para citar o grande exemplo recente desse desafio que ela exerce. E os EUA, claramente, não têm capacidade de impor à Rússia comportamentos diferentes dos que ela adota no meio internacional”, disse o docente da UnB.

A arrastada instabilidade política na Venezuela foi acentuada depois que a Assembleia Nacional proclamou Guaidó como presidente interino, em 23 de janeiro, sob a argumentação de que o segundo mandato de Maduro, iniciado duas semanas antes, seria ilegítimo por resultar de eleições fraudulentas. A medida legislativa foi tomada com base em três artigos da Constituição venezuelana, indicados para situações de vacância do poder presidencial. Mais de 50 países, liderados pelos EUA, respaldaram Guaidó, um político de 35 anos que também é presidente da Assembleia Nacional. Rússia e China mantêm o apoio a Maduro.

A Rússia emergiu como um ator influente na crise na semana passada, quando o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, afirmou que Maduro, alvo de uma frustrada tentativa de levante militar organizada por Guaidó, tinha um avião na pista pronto para voar para Havana quando “os russos lhe disseram que deveria ficar”. Moscou respondeu que as afirmações eram falsas.

Moscou tem importantes motivos para apoiar o regime chavista, um de seus poucos aliados na América Latina, para o qual enviou milhões em recursos destinados a socorrer a economia em colapso. Contudo, segundo analistas, o presidente Vladimir Putin estaria apostando em uma estratégia de longo prazo, esperando se aproveitar do caso da Venezuela em seu cabo de guerra com Washington.

“A Rússia procura transformar sua influência sobre Maduro — que, de fato, não é absoluta — em uma oportunidade de ter um diálogo com os EUA”, diz Tatyana Stanovaya, diretora do R.Politik, gabinete de análise com sede em Paris. Segundo ela, a Rússia, atingida por sanções ocidentais, percebeu que poderia ter essa oportunidade, mesmo que isso signifique abrir um confronto com Washington na América Latina.

Moscou vê seus laços com o Ocidente se deteriorarem fortemente desde que anexou a Crimeia, em 2014, e apoiou os separatistas no leste da Ucrânia, além de ter usado suas tropas para garantir a permanência no poder do presidente sírio, Bashar al-Assad. Mas a audácia com que o Kremlin conseguiu fazer um nicho na crise da Venezuela causa preocupação em Washington.

Nessa movimentação, Moscou enviou, em março, dois aviões com cerca de 100 soldados e equipamentos para Caracas. A manobra coincidiu com o ápice da defesa americana de uma possível ação militar para depor Maduro.

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Chanceleres tentam aparar arestas em Moscou

05/05/2019

 

 

 

 

A crise na Venezuela estará no foco do encontro diplomático que o chanceler russo, Sergei Lavrov, terá amanhã com o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, à margem de uma reunião ministerial do Conselho do Ártico. “O encontro terá lugar em Rovaniemi, na Finlândia. É claro que a crise na Venezuela será o principal”, anunciou à imprensa, em Moscou, o vice-chanceler Sergei Riabkov. Hoje, Lavrove deve receber na capital russa o colega venezuelano, Jorge Arreaza.

Na semana passada, os chefes da diplomacia das duas potências tiveram uma tensa conversa por telefone, na qual Lavrov pediu aos EUA que suspendam as “medidas agressivas” contra o governo de Nicolás Maduro, aliado de Moscou. O chanceler russo ainda lembrou ao colega que a “interferência” de Washington em assuntos internos de um país soberano viola a lei internacional.

Além do diálogo mantido com Pompeo, Lavrov informou que a Rússia formaria um grupo de países-membros das Nações Unidas com o propósito de “neutralizar” uma possível intervenção armada americana na Venezuela. O anúncio foi feito após a frustrada tentativa de levante militar lançada pelo líder opositor Juan Guaidó, proclamado presidente interino do país pela Assembleia Nacional, com apoio dos EUA e da direita venezuelana.

Moscou e Caracas têm uma aliança política, militar e econômica que foi consolidada entre o chefe do Kremlin, Vladimir Putin, e o falecido presidente venezuelano Hugo Chávez. Os russos fornecem assistência militar substancial ao aliado sul-americano, incluindo aviões de caça e um avançado sistema de defesa antiaérea. Além disso, Moscou ajuda a contornar as sanções impostas pelos EUA à indústria petroleira venezuelana, mas insiste que a extensão desse apoio é exagerada por Washington.

Mesmo após a morte de Chávez, em 2013, Putin seguiu cultivando as relações com o país que detém as maiores reservas de petróleo do mundo. A Rússia é o segundo credor mais importante em Caracas, depois da China, e investiu pesadamente no setor energético venezuelano, além de vender para o sócio bilhões de dólares em armas.

Segundo analistas, Moscou teria muito a perder com uma mudança de regime na Venezuela. Mas um possível entendimento com Washington poderia ser muito mais importante para o Kremlin. “Putin poderia fazer um acordo se, em troca de aceitar a saída de Maduro, obtivesse algo realmente grande da parte de Trump”, aponta Timothy Ash, estrategista na BlueBay Asset Management. Ele sugere que Moscou poderia aceitar o levantamento das sanções, o que permitiria às petroleiras russas operar na Venezuela sem estarem expostas a represálias americanas.

“Acho que eles (o governo Trump) ficariam felizes de fazer um trato com Putin, segundo o qual ele retiraria as tropas da Venezuela em troca de os EUA fazerem vista grossa para o que acontece na Ucrânia”, diz Ash. (JV)

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Três perguntas para...

05/05/2019

 

 

 

Julia Buxton, professora de Políticas Comparativas da Universidade Central Europeia, em Budapeste

Como a senhora vê a atual movimentação da Rússia em áreas consideradas de influência dos EUA, como a Venezuela?

Os EUA têm de compreender que não vivemos em um mundo unipolar, dominado unilateralmente por eles. O problema é que não têm habilidade diplomática ou mecanismos para acomodar interesses geopolíticos de outros países. Em alguns lugares, há um modus vivendi. Na Síria, os EUA atacam o Estado Islâmico e a Rússia apoia o presidente Bashar al-Assad, mas eles não se envolvem diretamente e estão do mesmo lado, em um sentido mais amplo. A proteção da Rússia aos próprios interesses era absolutamente inevitável, e os EUA estão forçando uma postura mais agressiva, ao retornar às narrativas da Doutrina Monroe — que pregava a supremacia de Washington no hemisfério americano.

Ao que se deve uma presença crescente da Rússia e também da China no cenário global?

Rússia e China têm de ser mais bem acomodadas no palco mundial. Em muitos aspectos, os Estados Unidos são uma potência em declínio, e novas realidades precisam ser compreendidas. O desafio é desenvolver melhores mecanismos internacionais para negociar interesses e garantir que a instabilidade seja combatida pela confiança mútua.

Como a senhora analisa a entrada de Moscou nas negociações sobre a desnuclearização da Coreia do Norte?

Trata-se de um equilíbrio importante. Essas conversações afetam os interesses globais, e a ideia de que poderiam avançar sem a Rússia é bastante simplista. Para o líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, a continuação das sanções impostas pelos EUA não gera confiança no processo de desnuclearização. Então, era inevitável que ele buscasse apoio diplomático com a Rússia.