Valor econômico, v. 19 , n. 4652 , 18/12/2018. Brasil, p. A4

 

Área é rica, deve ser explorada racionalmente

Cristian Klein

Leila Souza Lima

18/12/2019

 

 

O presidente eleito, Jair Bolsonaro, confirmou que a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, será revista em seu governo. A equipe de transição prepara um decreto nesse sentido, conforme revelou ontem o Valor. "[É a] área mais rica do mundo. Você tem como explorar de forma racional. E no lado do índio dando royalty e integrando o índio à sociedade", disse Bolsonaro, que participou, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, da inauguração do III Colégio da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, batizado de Percy Geraldo Bolsonaro, em homenagem ao pai do presidente eleito.

O território onde fica a reserva, com superfície de 1.678.800 hectares e perímetro de 1.000 km, foi objeto de disputa judicial - ao longo do governo do PT na década passada - que envolve índios, produtores de arroz e governo estadual. Em 2009, decisão final do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou a homologação contínua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que fora homologada em 2005 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, determinando a retirada dos não indígenas.

Caso leve adiante a decisão, o presidente eleito terá que enfrentar o STF e até instâncias internacionais, por "incorrer em arbitrariedade", diz a advogada Carolina Mota Mourão. "É um atropelo; o processo administrativo protege do poder arbitrário." Professora de Direito Administrativo da Universidade Presbiteriana Mackenzie e consultora do escritório Pessoa, Valente Motta Pinto, a especialista explica que esse ato configura desrespeito do Executivo à própria Constituição, por interferir em processo administrativo pré-existente.

"A demarcação não é decisão unilateral. Decorre de processo em que foram ouvidos todos os atores: indígenas, quem se sente violado no direito à propriedade, arrozeiros, Estados, municípios, Fundação Nacional do Índio", enumera Carolina. Segundo a advogada, há ritos que incluem estudos antropológicos, e a natureza é declaratória - ou seja, o processo não cria nova prerrogativa. "Reconhece um direito que já havia antes da Constituição de 1988. Não é constitutivo."

Carolina destaca dois aspectos que a preocupam. O primeiro é que esses processos são feitos segundo o que determina o decreto 1775, de 1996, que dispõe sobre o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, contendo todas as fases. "Ele pode vir a ser alterado", diz. O segundo é a intenção do futuro governo de tirar a Funai da competência do Ministério da Justiça. "É um retrocesso colocar em qualquer outra pasta."

Para antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, professora titular aposentada da Universidade de São Paulo (USP) e emérita da Universidade de Chicago, como as terras indígenas são propriedade da União e objeto de muitos conflitos gerando invasões e desintrusões, o Ministério da Justiça, com seu papel de mediador de conflitos e sua ligação direta com a Polícia Federal, seria o mais apropriado para implementar e coordenar a resolução desses impasses.

A antropóloga diz que processos de integração já não são mais entendidos hoje como assimilação cultural. "Integrar não é eliminar diferenças, e sim articular com justiça as diferenças que existem", afirma. "Além disso, se confiarmos nos precedentes históricos, veremos que o discurso da integração tem sido um caminho para liberar as terras indígenas para o mercado."

Carolina ressalta que há uma série de convenções das quais o Brasil é signatário e lembra a de número 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que marcou avanços no reconhecimento dos direitos indígenas, no âmbito econômicos, sociais e culturais. "Nela, está muito claro que o modelo integracionista não pode mais prevalecer."

A decisão do presidente eleito vai proporcionar "liberdade" para os índios da região, afirma Frederico D'Avila, conselheiro da Sociedade Rural Brasileira (SRB). "Acho a medida correta porque havia uma produção forte de arroz ali e várias pessoas foram expulsas, dos dois lados da reserva", afirmou o ruralista.

"Inclusive muitos índios trabalhavam com os rizicultores e ficaram lá na reserva na época, uns voltando para idade das cavernas. Outros se juntaram com o homem branco e se dirigiram para Boa Vista, o que fez surgirem favelas", diz D'Avila. Ele defende também que os indígenas tenham direito a vender as terras ou a obter empréstimo legal para entrar na atividade produtora ou de exploração mineral.

Bolsonaro afirmou ontem ainda que a ideologia de gênero é "mal fadada" e reafirmou que, na sua visão, "ou se nasce homem ou mulher". "[Ideologia de gênero] é negação a quem é cristão", afirmou. Na escola militar, ele também disse que "vem daqui" o modelo para a educação, que será estendido para vários municípios do Rio de Janeiro.