O globo, n. 31336, 24/05/2019. País, p. 7

 

Em vilarejo 'fantasma', vidas e histórias abandonadas

João Paulo Saconi

24/05/2019

 

 

Risco de rompimento de barragem em Barão de Cocais deixa casas e objetos esquecidos em povoado mineiro

Há comida em panelas deixadas sobre o fogão e mantimentos nos armários há quase quatro meses. Escovas de dentes e chinelos ficaram para trás, assim como roupas que secavam no varal, hoje danificadas pelo sol forte. Sobre uma cama em que documentos e lembranças importantes foram espalhados nos preparativos para a fuga, restou uma carteira de vacinação. Acima do móvel, no teto, quem dorme são os morcegos, novos moradores da casa abandonada em fevereiro no povoado de Socorro (MG), nos arredores de Barão de Cocais, o primeiro local a ser afetado caso a ameaça de rompimento de uma barragem da Vale se cumpra.

Na espera pela chegada da lama de rejeitos da mina de Gongo Soco, mais de 400 pessoas foram obrigadas a evacuar o vilarejo, fundado há cerca de 280 anos. Desde então, as casas foram visitadas apenas por profissionais da Vale, que resgataram e alimentaram animais de estimação. Nas portas das casas, há placas informando a data da última vistoria, a maioria em 25 de fevereiro, bem como o nome do proprietário de cada casa e os bichos retirados delas (cachorros, gatos, pássaros e até um burro).

Após fevereiro, ninguém parece ter pisado no local onde a equipe de reportagem do GLOBO esteve ontem, a dois dias de uma iminente complicação na mina. Apesar do bloqueio feito pela Vale e pela Defesa Civil, há uma brecha acessível próxima a uma das margens do Rio Socorro. Ela poderia permitir o retorno dos moradores, mesmo com as ameaças de prisão a quem descumprir o protocolo.

Não há, porém, ninguém em casa. Estavam ali na manhã de ontem, além de um gato esquecido no imóvel de número 550, um cavalo e uma seriema, ave silvestre atraída pelas árvores, laranjas, tangerinas, bananas, jabuticabas e limões. Há um pé de abóbora que tomou a metade de uma rua. A placa que dá boas-vindas a quem chega em Socorro não pode ser lida de longe. O mato cresceu em volta da sinalização e da academia ao ar livre que fica ao lado dela. Em frente, há uma bica d'água que ainda funciona tanto quanto a iluminação pública e das casas: há luzes acesas em postes e até no interior de uma casa. Há ainda uma unidade da prefeitura de Barão de Cocais, também abandonada.

A poucos metros, a Igreja Nossa Senhora Mãe de Augusta do Socorro permanece quase intocada. As portas e janelas fechadas preservam o patrimônio religioso construído em 1737. É a igreja mais antiga da região. Também há um templo da Assembleia de Deus. Ao contrário de dezenas de casas, o altar católico está vedado e não foi invadido pelo mato e pela relva.

Pelas portas e janelas abertas de vários imóveis, é possível constatar o quanto os antigos habitantes de Socorro foram pegos de surpresa. Quem não conseguiu fechar adequadamente as entradas da própria casa deixou móveis, roupas e uma infinidade de objetos pessoais.

A terra levada pelo vento e pela chuva formou uma camada fina sobre as paredes de quartos, salas, cozinhas e banheiros. Uma das portas fechadas exibe, até hoje, uma guirlanda natalina. Na vizinhança, há um bonequinho representando o Papai Noel sob um portão e a mensagem “Feliz Natal” pintada numa fachada. Um mês e dez dias após a comemoração, não houve tempo para retirar as decorações.