Correio braziliense, n. 20428, 26/04/2019. Mundo, p. 12

 

Aliança estratégica

Rodrigo Craveiro

26/04/2019

 

 

Em cúpula inédita, Vladimir Putin e Kim Jong-un selam aproximação. Ditador da Coreia do Norte acusa os EUA de agir de má-fé após fracasso nas negociações. Líder russo diz que Pyongyang aceita desnuclearização, mas exige garantia de segurança

De um lado, o líder de um regime considerado pária pela comunidade internacional, que há dois meses amargou o fracasso da cúpula com o americano Donald Trump, em Hanói. De outro, o presidente de uma nação acusada de anexar parte da Ucrânia, de interferir nas eleições dos Estados Unidos e de reforçar sua soberania no cenário global. Ao fim do primeiro encontro com o norte-coreano Kim Jong-un, na cidade portuária de Vladivostok, o russo Vladimir Putin anunciou que Pyongyang está disposto a levar adiante a desnuclearização, caso receba garantias de segurança. “Eles (norte-coreanos) apenas precisam de salvaguardas sobre a sua segurança. É isso. Todos nós, juntos, precisamos pensar sobre isso”, defendeu o chefe do Kremlin. Entre as garantias, Pyongyang espera o alívio das sanções financeiras impostas pelo Ocidente em retaliação ao programa nuclear. Enquanto se alinhava a Moscou, Kim aprofundava o fosso com Washington.

De acordo com a agência de notícias estatal da Coreia do Norte KCNA, o ditador acusou os Estados Unidos de agir de má-fé durante a reunião em Hanói e advertiu que a paz na Península Coreana “depende de ações futuras” da Casa Branca. “A situação na Península Coreana e na região está em um impasse e atingiu um ponto crítico, em que pode haver retorno ao estado original,já que os EUA assumiram uma atitude unilateral de má-fé nas recentes negociações”, declarou Kim.

Ao classificar a cúpula em Vladivostok de “aberta e amistosa”, a KCNA divulgou que Kim “convidou Putin a visitar a Coreia do Norte em um momento conveniente, e o convite foi prontamente aceito”. Ante o retrocesso nas negociações com Trump, o regime de Pyongyang avisou que estará preparado para “todos os cenários”. Putin instou o mundo a renunciar à lei do mais forte, a fim de solucionar a crise nuclear. “Estou contente com o resultado: Kim Jong-un é alguém bastante aberto, disposto a falar de tudo”, comentou o russo. O último encontro entre lideranças dos dois países ocorreu em 2011, entre os então presidentes Dmitri Medvedev e Kim Jong-il. Putin tratou de contemporizar a crise entre EUA e Coreia do Norte e disse que saúda o estabelecimento do diálogo entre Pyongyang e Washington, lembrando que “não há alternativa a uma solução pacífica de problemas nucleares”.

Durante as quase cinco horas que passou em território russo, Kim explicou que teve “conversas sinceras e significativas” com o anfitrião “sobre questões de desenvolvimento da relação amigável entre as nações, da garantia da paz e da segurança na Península Coreana e na região, além de temas internacionais comuns”. A conversa se arrastou por três horas, no campus da Universidade Federal do Extremo Oriente. Kim se disse “bastante desejoso” de levar os laços coreanos-russos a um “nível mais alto”.

Barganha

Em entrevista ao Correio, Alexey Maslov, diretor da Faculdade de Estudos Asiáticos da Universidade de Pesquisa Nacional (em Moscou), explicou que a cúpula de Vladivostok foi “muito mais necessária para os norte-coreanos do que para o russos”. “Para Kim, é um bom modo de demonstrar sua disposição em negociar e abertura de espírito, sem perder o status de líder do poder nuclear. Ele tenta conseguir apoio da Rússia e esclarecer que tipo de garantias Moscou estaria pronto para fornecer a Pyongyang, em troca de desnuclearização parcial ou total”, afirmou. “Para Putin, a reunião se tornou uma boa chance de retomar a ideia sino-russa de ‘congelamento duplo’, ou seja, congelar todos os testes nucleares e o desenvolvimento de novas tecnologias atômicas, a fim de obter flexibilização das sanções contra a Coreia do Norte.”

De acordo com Maslov, Washington claramente reconhece que é impossível resolver o impasse nuclear sem tomar passos decisivos. “No entanto, vários erros do governo Trump colocaram China e Rússia no primeiro plano do tema norte-coreano. Moscou e Pequim estão prontos para simpatizar com as posições de Pyongyang, na busca de garantias abrangentes para o futuro. Até agora, eles não representam ameaça real para Trump, mas fornecem uma alternativa real para Kim.”

Por sua vez, Dmitry Zhuralev, diretor do Instituto de Assuntos Regionais (em Moscou), admitiu à rede de TV Al-Jazeera que Kim deixa Trump em situação desconfortável e que, caso os EUA intensifiquem as ameaças, a Coreia do Norte pode usar a Rússia como fator dissuasivo. “Este é o avanço que o lado norte-coreano precisava dizer aos EUA: ‘Veja, temos laços normais com Moscou; se algo ocorrer, nós correremos até eles em busca de proteção. Parem de cerrar os punhos’”, afirmou.

“Nós saudamos os passos da liderança da Coreia do Norte em estabelecer um diálogo com os EUA e em normalizar relações entre as Coreias do Sul e do Norte. (…) Não há alternativa a uma solução pacífica de problemas nucleares e de outros problemas da região”
Vladimir Putin, presidente da Rússia

“Eu tive conversas sinceras e significativas com o presidente Putin sobre questões de desenvolvimento da relação amigável entre a Coreia do Norte e a Rússia, da garantia da paz e da segurança na Península Coreana e na região, além de temas internacionais comuns”
Kim Jong-un, ditador da Coreia do Norte

Eu acho...

“O encontro entre Putin e Kim ocorreu sem grandes surpresas, mas parece que o norte-coreano esperava mais da cúpula do que eventualmente obteve. Parece que, apesar do sorriso no rosto, Kim estava tenso e um pouco nervoso, enquanto Putin se mostrava relaxado e satisfeito. O fracasso da cúpula entre Trump e Kim em Hanói se deve à brusca mudança do principal ponto de discussão: o desvio da desnuclearização gradual em troca do alívio das sanções à total desnuclearização.”

Conta milionária por americano

A Coreia do Norte apresentou aos Estados Unidos uma conta de US$ 2 milhões relativa à hospitalização de Otto Warmbier, o prisioneiro norte-americano que entrou em coma e morreu, dias depois de ser enviado de volta ao seu país. O valor das despesas com a internação foi entregue a Joseph Yun, ex-representante do Departamento de Estado para a Coreia do Norte, que viajou a Pyongyang, em junho de 2017, para buscar Warmbier. Segundo a rede de TV CNN, o governo dos Estados Unidos não pagou a conta. Warmbier foi capturado em janeiro de 2016, acusado de retirar um cartaz do corredor do hotel onde estava hospedado.

Os bastidores do encontro Ao estilo Game of thrones

O ditador Kim Jong-un ofereceu a Vladimir Putin uma tradicional espada coreana nas cores dourada e azul, guardada dentro de uma caixa de madeira. Por sua vez, o presidente russo retribuiu com outra espada e com um jogo de chá adequado para Kim utilizar em seu trem blindado. “Quando armas modernas não existiam, eles usavam tais espadas. Elas incorporam força, minha alma e nosso povo, que o apoia”, declarou o norte-coreano. Putin agradeceu a Kim pelo presente, mas lembrou que existe uma crença popular na Rússia segundo a qual oferecer armas é um gesto passível de desaprovação.

Banquete russo clássico

De acordo com a agência de notícias Itar Tass, que teve acesso ao menu do banquete entre os dois chefes de Estado, Kim e Putin saborearam uma típica refeição russa. Entre os pratos servidos no jantar de ontem estavam: salada de caranguejo, pelmeni (uma espécie de bolinho russo) com carne de veado, borscht (tradicional sopa de beterrabas), filé de bacalhau com molho de endro, bife de Khabarovsk com berinjelas assadas, sorvete de maçã caramelizada e bolo de chocolate.

Medalhão celebrativo

Durante o banquete, cada lugar disponível às mesas trazia um medalhão alusivo ao encontro. A peça estampava a palavra “bem-vindo” em russo e em coreano e um desenho dos dois chefes de Estado diante das respectivas bandeiras de seus países.

Música e dança típicas

A agência de notícias russa Interfax informou que os dois dirigentes apreciaram apresentações de dança e música do cossacos de Kuban. Também assistiram ao coral da Guarda Nacional Russa e ouviram clássicos, como Ochi chyornye (“Olhos escuros”) e Lago dos cisnes.