Valor econômico, v.19 , n.4558 , 01/08/2018. Opinião, p.A10

 

Ajuste fiscal com crescimento

​Francisco Lafaiete Lopes

01/08/2018

 

 

A emenda constitucional do teto dos gastos públicos foi a maior contribuição da gestão de Henrique Meirelles no Ministério da Fazenda. Sua importância para a estabilização da economia brasileira é comparável à reforma monetária do Plano Real ou à institucionalização da politica monetária com a criação do Copom. Ela introduziu na Constituição uma regra fiscal que produzirá de forma gradual um ajuste fiscal como consequência do crescimento da economia. Trata-se de uma ideia brilhante, provavelmente a única forma viável de obter isto no contexto atual da democracia brasileira.

Não obstante começam a surgir críticas. O pré-candidato Ciro Gomes já defende publicamente que seja revogada, Marina Silva mostra dúvidas e Geraldo Alckmin afirma que para controlar as finanças do Estado de São Paulo não foi necessária nenhuma regra rígida de teto. O Tribunal de Contas da União (TCU) publicou um estudo sugerindo o risco de uma paralisia total da máquina pública. Alguns economistas envolvidos com pré-candidatos consideram que a medida é excessiva e inexequível; acham que não passa de uma declaração simbólica de intenções.

Outros, de veia mais poética, a comparam a uma promessa de alcoólatra e há até quem se refira a ela como o excêntrico teto de gastos. Parece até que esses senhores não leram o texto da emenda e desconhecem que estão previstos mecanismos automáticos radicais de contenção de gastos se o teto for estourado.

Vamos lembrar como essa regra fiscal vai funcionar. A taxa de crescimento das despesas públicas deverá ser não superior à taxa de inflação, que em condições normais é inferior à taxa de crescimento do PIB. Consequentemente a despesa pública como percentagem do PIB estará caindo ao longo do tempo, ao passo que a receita pública manterá uma relação estável com o PIB. O resultado é que o déficit primário do governo será eventualmente erradicado, transformando-se em superávits primários crescentes. Eventualmente a dívida pública como percentagem do PIB vai parar de aumentar e passará a declinar, mostrando que está de fato ocorrendo um ajuste fiscal.

Existe, porém, uma dificuldade na forma como o teto foi instituído pela Emenda Constitucional 95 (EC 95). Considere a despesa pública como composta por três grandes itens: os benefícios do INSS, as despesas obrigatórias (incluindo despesas de pessoal e outras) e as despesas discricionárias. O controle orçamentário do governo pode impedir que a taxa de crescimento dos dois últimos itens supere a taxa de inflação, mas não pode fazer o mesmo com a taxa de crescimento dos benefícios, que só depende da evolução do salário mínimo e de parâmetros demográficos. Esta é a única dificuldade com a regra do teto.

Nossa projeção é que num horizonte de dez anos a taxa de crescimento dos benefícios será da ordem de 8,5% ao ano, bem superior à taxa media de inflação do IPCA que vai definir a evolução do teto dos gastos. Para compensar, mantendo a despesa total e as despesas obrigatórias alinhadas ao teto, será necessário reduzir as despesas discricionárias continuamente ao longo do tempo até chegar à zero em 2026. A partir deste ponto a regra do teto ficará inviável.

Note-se, por outro lado, que neste caso teremos um ajuste fiscal espetacular com superávit primário de quase 4% do PIB em 2026 e redução de dez pontos na dívida como percentual do PIB até aquele ano.

É claro que o governo percebeu essa dificuldade quando desenhou a regra do teto, já que sabia que sua capacidade de controlar os benefícios do INSS está limitada por preceitos constitucionais. Talvez tenha lhe parecido uma grande oportunidade de motivar politicamente a reforma da previdência e de fato o ministro Meirelles desenhou uma proposta de reforma exatamente dimensionada para neutralizar a dificuldade.

Acontece que a proposta não foi aprovada mesmo após uma negociação que reduziu à metade a contenção pretendida dos benefícios no horizonte de dez anos, mostrando que talvez não tenha sido boa estratégia dimensionar a reforma da previdência para resolver a dificuldade gerada pela regra do teto.

Será então que a estratégia de ajuste fiscal com crescimento utilizando o teto dos gastos é inviável? Não necessariamente! Esse problema da compressão do valor nominal das despesas discricionárias pode ser eliminado com uma pequena modificação na EC 95, que consistiria em adicionar um parágrafo ao artigo 107 estabelecendo duas coisas: primeiro que despesas primárias no caso do Poder Executivo passam a não incluir benefícios do INSS e, segundo, que os limites do teto passam a ser calculados tomando como base as despesas realizadas no ano anterior a essa modificação.

Se fizermos projeções com as hipóteses de que essa modificação entra em efeito a partir de 2021 e de que não será possível obter qualquer avanço na reforma da previdência, o resultado primário do governo central ainda passa a ficar positivo a partir de 2021 e evolui para um superávit significativo de quase 2% do PIB em 2026. Neste caso ainda teremos um processo de redução da dívida do setor público, apenas um pouco mais lento que no caso em que não ocorre mudança da regra em 2021.

Podemos projetar que mesmo com essa modificação da EC 95 ocorrendo já em 2021 e sem qualquer ganho de contenção nos benefícios da previdência, o que nos parece muito improvável, a regra do teto dos gastos produzirá uma redução na dívida pública bruta próxima a 10 pontos percentuais até 2028, ou seja, um belo sucesso para a estratégia de ajuste fiscal com crescimento.