Correio braziliense, n. 20370, 27/02/2019. Mundo, p. 12

 

Ameaça a Guaidó

27/02/2019

 

 

Um novo foco de tensão na crise venezuelana promete ser o retorno a Caracas do líder opositor Juan Guaidó, reconhecido por 50 países como presidente interino e que se encontra na Colômbia desde o fim de semana passado. Em tom de ameaça, o presidente Nicolás Maduro exigiu que o adversário respeite a lei e avisou que, se ele voltar à Venezuela, “terá que ver a cara da Justiça”. A pedido do Palácio de Miraflores, o Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) tinha imposto uma medida cautelar proibindo que o opositor deixasse o país. Em Bogotá, Guaidó garantiu, ontem, que iniciaria o retorno a Caracas “nas próximas horas”, mesmo sob risco de prisão por descumprimento da ordem judicial.

A decisão do TSJ — tribunal favorável a Maduro — foi tomada em 23 de janeiro e incluiu o congelamento das contas de Guaidó, em atendimento a pedido do procurador-geral venezuelano, Tarek William Saab. O opositor havia se autoproclamado presidente interino da Venezuela em meio a uma grande manifestação realizada seis dias antes, em 23 de janeiro.

“Se um tribunal disser que Donald Trump ou Barack Obama não podem deixar o país durante uma investigação judicial, se eles saírem e voltarem, o que a lei dos EUA deve fazer? Que todos tirem suas conclusões”, disse Maduro em entrevista à ABC News. “Ninguém pode fugir da lei, Guaidó precisa responder à Justiça, não a Nicolás Maduro”, acrescentou o chavista. Na entrevista, ele também acusou o governo dos EUA de “fabricar uma crise” para justificar a intervenção não apenas no país, mas na América do Sul.

Guaidó está na Colômbia desde o fim de semana, quando liderou uma frustrada tentativa de entrar em território venezuelano acompanhado de toneladas de ajuda humanitária enviadas pelos Estados Unidos e pelo Brasil. A operação, no entanto, não pôde ser realizada em razão do fechamento das fronteiras da Venezuela com o Brasil e com a Colômbia, ordenada por Maduro. Houve confrontos entre forças de segurança leais ao chavista e manifestantes venezuelanos. Caminhões com alimentos e remédios foram incendiados. Quatro pessoas morreram e 300 ficaram feridas, segundo dados da ONU.

Também líder da Assembleia Nacional da Venezuela, controlada pela oposição, Guaidó teve, entre os últimos compromissos na Colômbia, a reunião do Grupo de Lima. O encontro, ocorrido em Bogotá anteontem, terminou com uma declaração na qual defendeu uma transição pacífica de poder na Venezuela, “sem o uso da força”.

Diante das ameaças de Maduro, Guaidó afirmou que “seu dever é estar em Caracas” mesmo com o risco de ser preso. “Um preso não serve para ninguém, um presidente exilado tampouco. Estamos em uma zona inédita. E minha função e meu dever é estar em Caracas apesar dos riscos, apesar das implicações”, disse ao canal NTN24. Ele insistiu que voltará nesta semana a Caracas para exercer suas “funções” como presidente interino. A Colômbia denunciou “ameaças sérias” contra Guaidó e responsabilizou o governo “usurpador” do que possa ocorrer com ele.

Bolívia

O presidente da Bolívia, Evo Morales, aliado de Maduro, saudou o pronunciamento do Grupo de Lima contra o uso da força na crise venezuelana e a favor de uma transição democrática que obedeça à Constituição. “Saudamos os países do Grupo de Lima que se pronunciaram contra uma intervenção armada contra a Venezuela”, escreveu em sua conta no Twitter. “Somos uma região de paz, em que o respeito pela vida é fundamental para nossos povos. Dissemos e mantemos: o diálogo é o único caminho”, observou Morales.

Os Estados Unidos pretendem que o Conselho de Segurança da ONU vote nesta semana projeto de resolução que pede a entrada de ajuda humanitária na Venezuela, informou Elliott Abrams, diplomata americano na organização. “Teremos uma resolução esta semana que certamente pedirá que se admita a ajuda humanitária na Venezuela”, disse o funcionário.

Autoridades migratórias colombianas informaram que, nos últimos quatro dias, mais de 270 militares, a maioria de baixa patente, abandonaram as forças armadas bolivarianas e entraram na Colômbia. Outros sete fugiram para o Brasil. Segundo dados oficiais do governo venezuelano, o efetivo da Força Armada Nacional Bolivariana varia de 95 mil a 150 mil. Ou seja, o percentual de militares que deixaram o país nos últimos dias fica em torno de 0,3%.

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Brasil prepara plano de repatriação

27/02/2019

 

 

 

 

O Itamaraty começou a preparar medidas de assistência para retirar brasileiros que pretendam deixar a Venezuela em razão do aprofundamento da crise no país vizinho. Desde o último sábado, o Consulado do Brasil em Caracas envia um formulário aos brasileiros perguntando se existe o interesse em abandonar a Venezuela caso sejam oferecidos meios de transporte.

“Em caso de agravamento da situação política na Venezuela, você teria interesse em retornar ao Brasil, se o governo brasileiro oferecer meios de transporte?”, é a pergunta feita aos residentes. Além disso, o Itamaraty sonda quantos dependentes acompanhariam cada um que responder ao questionário.

No último sábado, foram registrados confrontos nas fronteiras da Venezuela com o Brasil e com a Colômbia. Ambas as passagens acabaram fechadas por ordem do governo de Nicolás Maduro, com o objetivo de barrar o acesso de caminhões com ajuda humanitária a seu território.

Na ocasião, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil divulgou dois alertas aos brasileiros. Um deles  justamente explicava a importância de se responder ao questionário. “Em vista da situação por que passa a Venezuela, este Consulado-Geral está coletando informações dos brasileiros residentes no país para fins de adotar medidas cabíveis de assistência consular. Para tanto, solicita o preenchimento do formulário.”

O outro comunicado instou os brasileiros a evitarem áreas de conflito. “O Consulado-Geral recomenda, também, aos turistas brasileiros que evitem viajar à Venezuela neste momento e enquanto perdurar a situação.”

O vice-cônsul brasileiro em Santa Elena do Uairén, Ewerton Oliveira, disse que um grupo retido na cidade venezuelana de fronteira com Pacaraima, em Roraima, deveria começar a regressar ao Brasil ontem. Ele afirmou ter obtido aval parcial do regime chavista para repatriar pessoas com problemas de saúde. As negociações estavam emperradas, com a necessidade de autorização de Caracas.

“Acabei de receber autorização do general venezuelano para que os brasileiros com situação de saúde possam buscar tratamento aqui em Pacaraima ou em Boa Vista. Vou reunir todos para, possivelmente, tentar atravessar com eles até o fim dessa tarde”, disse Oliveira. Segundo o vice-cônsul, 100 brasileiros tinham buscado assistência na representação até segunda-feira. Entre 10 e 15 estão doentes ou em recuperação.

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Três perguntas para...

27/02/2019

 

 

 

Manuel Otero, diretor-geral do Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA). Ele esteve em visita a Brasília, ontem

Como o senhor analisa o papel do Brasil na mediação da crise venezuelana?

O Brasil tem dois eixos que o tornam um ator fundamental no processo de transição. O primeiro é a extensa fronteira que o une com a Venezuela. O outro é o fato de o Brasil ser o detentor do modelo de agricultura tropical mais bem-sucedido do mundo. Tanto a curto quanto a médio prazo, o Brasil tem muito a oferecer. Seguramente, a curto prazo, haverá ações humanitárias e será necessário repensar a nova institucionalidade para o desenvolvimento da pecuária e rural da Venezuela. Com a normalização de todos esses processos, seguramente surgirão oportunidades comerciais, inicialmente do Brasil para a Venezuela, e, com o passar do tempo, a Venezuela poderá criar excedentes e participar do cenário internacional. O Brasil e a Colômbia são atores-chave no processo de reconstrução e criação dessa nova institucionalidade pecuária e rural brasileira. Quando falo das instituições, eu me refiro àquelas que serão criadas a partir do primeiro dia do processo de transição.

Que soluções o IICA aponta para a crise alimentar na Venezuela?

O IICA assume o compromisso de, uma vez iniciado o processo de transição, trabalhar junto aos venezuelanos e às instituições na reconstrução do sistema agroalimentar e na recuperação da cadeia de valores. Não há soluções mágicas. Precisamos de um plano bem concreto, com soluções a curto e médio prazos. Os verdadeiros protagonistas serão os venezuelanos. A situação da Venezuela é muito delicada. Inúmeros estudos mostram um retrocesso de mais de 50% em termos de ofertas de produtos da cadeia alimentícia. Isso faz com que a ingestão calórica e proteica seja muito baixa.

Como o senhor vê o fato de os caminhões com ajuda humanitária serem impedidos de entrar no país?

Eu sinto impotência e amargura ante o fato de recorrerem a esses métodos para impedir que a ajuda humanitária chegue às mãos do povo venezuelano. Isso quando sabemos, perfeitamente, do nível de vulnerabilidade e da dificuldade em ter acesso aos alimentos por grande parte da população. Sinto indignação, repulsa e expectativa de que isso nunca mais volte a ocorrer. (Rodrigo Craveiro)