O globo, n. 31303, 21/04/2019. Mundo, p. 30

 

Entrevista - Frank McCann: 'Ao contrário de Roosevelt, não haverá avenida Trump no Brasil'

Frank McCann

Paola de Orte

21/04/2019

 

 

Para historiador americano, aproximação entre Trump e Bolsonaro pode não se traduzir em resultados concretos; ele vê com reservas uso de militares na segurança pública

No início de abril, o vice-presidente Hamilton Mourão esteve nos Estados Unidos participando de um evento promovido por estudantes brasileiros. Nos pouco mais de dois dias que passou em Boston, quis conhecer Frank McCann. O historiador é autor do livro “Soldados da pátria: história do Exército brasileiro” e disse que o vice-presidente lhe garantiu ter lido “de capa a capa”. Em breve, lançará novo título em português pela Companhia das Letras sobre a cooperação entre Brasil e EUA durante a Segunda Guerra Mundial. Ao GLOBO, McCann mostrou preocupação com o envolvimento de militares na segurança pública e dúvidas sobre a aproximação com os EUA. “Eu gostaria que tivesse sido feito por presidentes diferentes nos dois países”, disse.

Quais suas impressões do encontro com o vice-presidente Hamilton Mourão?

Eu o achei muito diferente de (Jair) Bolsonaro. Pude assistir a uma sessão de perguntas e respostas com cerca de 50 estudantes brasileiros antes da reunião. Ele é culto, se comunica bem em português e em inglês. Teve uma carreira de sucesso no Exército, chegando a general de quatro estrelas. É um bom soldado, acostumado a prestar deferência a seus superiores, o que é útil na sua atual posição como vice-presidente.

Como o senhor avalia o atual papel das Forças Armadas no governo brasileiro?

Os militares em si estão apenas cumprindo seu papel constitucional. Os membros do governo que são militares aposentados são outra história. Eles parecem ser mais um elemento estabilizador do que outra coisa. Estão acostumados afazer trabalho administrativo, então se adequam facilmente. Algumas das outras pessoas que foram nomeadas, como o ministro da Educação, recentemente demitido, não eram pessoas que tinham experiência administrativa.

Depois do fim do regime militar no Brasil, houve episódios em que as Forças Armadas foram chamadas a atuar na segurança pública. Mais recentemente, com a intervenção no Rio de Janeiro, este debate voltou. O que pensa sobre o engajamento dos militares nessa área?

Acho curioso, estranho, que o Exército tenha se envolvido, porque, por muitos anos, foi discutido o uso de militares como força policial. Os oficiais com quem falei ao longo de anos se opunham porque tinham medo de criar situações em que seu pessoal pudesse ser subornado por gangues, e isso seria muito ruim para a disciplina e para a missão que estavam tentando levar adiante.

Isso pode gerar desgaste para as Forças Armadas?

É muito perigoso, porque, se eles usam muito a força e as pessoas se machucam, ou são mortas, é ruim para a instituição. Portanto, é ruim para sua imagem e é ruim internamente, porque compromete a disciplina. Os militares já foram usados aqui nos EUA dessa maneira e não terminou bem. Aqui temos uma força de reserva que é frequentemente usada como Força da Guarda Nacional para intervenções policiais. Quando o Exército federal é usado, eles nunca entram com armas carregadas. A munição fica separada das tropas, só é distribuída quando os oficiais acharem necessário. No Brasil os soldados estão indo com armas carregadas. É sempre um risco, sempre perigoso quando se tem homens que são treinados para matar, para derrotar um inimigo. Militares não são treinados para ser polícia. A ideia de derrotar alguém não é o que a polícia deve fazer.

Durante a visita do presidente Bolsonaro a Washington, Donald Trump anunciou que o Brasil seria designado grande aliado extra-Otan. Isso traz vantagens para as Forças Armadas brasileiras?

Poderia trazer. Eu gostaria que tivesse sido feito por presidentes diferentes nos dois países, porque nós temos um presidente que é muito instável e perigoso, e Bolsonaro não é uma pessoa muito estável. Ambos são de alguma maneira mentalmente instáveis. Fico feliz de ver um presidente americano reconhecer a importância do Brasil em qualquer nível, reclamei disso por muitas décadas. Mas uma das piores coisas que ambos fazem é esse uso do Twitter. Não é um jeito digno de se comunicar com uma nação.

Essa designação diminui a autonomia do Brasil para comprar equipamentos de outros aliados?

Depende de como eles negociarem o acordo. Nada acontece automaticamente. Até com os aliados da Otan os EUA negociam individualmente. A questão é: o que será compartilhado? O Brasil vai ter mais informação de inteligência? Mais do que quem? Austrália, Canadá? De certa maneira, é relações públicas, publicidade, dizer que somos aliados.

Não vê objetivos concretos?

Por si só, não. Depende do que for decidido.

Nos seus livros, o senhor trata da cooperação entre as Forças Armadas do Brasil e dos EUA. Chamaria essa cooperação de aliança?

Eu diria que Brasil e Estados Unidos têm sido aliados desde os anos 1940, sobretudo desde a Segunda Guerra.

No seu livro sobre a história dessa relação na Segunda Guerra, fala de um convite feito ao Brasil para que participasse da ocupação da Áustria.

Um diplomata brasileiro que estava na Itália ficou sabendo disso por um general britânico. O britânico lamentava que os brasileiros não iriam ficar na Europa. A importância disso era que o Brasil seria parte do grupo de países que participariam da ocupação da Alemanha e da Áustria. Isso o colocaria numa posição de mais voz no mundo. Mas não aconteceu. Sei que a oferta foi feita, mas não há clareza sobre a quem.

Existe também a ideia de que Franklin Roosevelt teria prometido a Getúlio Vargas um assento no Conselho de Segurança da ONU...

Aparentemente os EUA prometeram muitas coisas. A dificuldade é que, quando se fala de dois países, quem fala pelo país? Em abril de 1945, Roosevelt morreu, o governo mudou e quem entrou, o presidente Harry Truman, não sabia nada das relações entre Roosevelt e Vargas. Também não contribuiu o fato de que em outubro de 1945 os militares tiraram Getúlio do poder, porque ele sabia de coisas que não colocou no papel. A relação pessoal que ele tinha com Roosevelt se perdeu.

A aproximação durante a guerra acabou se tornando uma decepção?

Acho que foi muito decepcionante.

Houve um segundo momento, em 1977, em que Ernesto Geisel denunciou o acordo militar Brasil-EUA, assinado em 1952. Tendo em vista esses dois momentos de aproximação e afastamento, a convergência atual pode também decepcionar?

O que eu não sei é se Trump perguntou aos militares o que eles pensam. Ele tem a autoridade para dizer o que quer e tentar forçar os militares a fazer isso, mas, se você vai ter uma aliança, ajuda muito se as pessoas envolvidas em fazê-la funcionar a quiserem. O Exército americano tem estado muito focado em outra parte do mundo. Acho que só os especialistas conhecem algo de Brasil. Então, tenho dúvida se terá um bom resultado.

Acha que a relação entre Bolsonaro e Trump pode ter o mesmo fim da relação entre Roosevelt e Vargas, não atingindo em termos concretos o que eles pensavam alcançar na relação pessoal?

Sim, acho. Uma coisa é certa: não haverá avenidas Trump no Brasil. Em muitas partes do Brasil você encontra “Avenida Franklin Roosevelt”. Trump não será celebrado no Brasil. Ficarei muito surpreso se estiver errado. Seria bom para os militares brasileiros terem relações mais amigáveis com os militares americanos. Mas se isso é realmente possível, não tenho como dizer.