Valor econômico, v. 19, n. 4600, 29/09/2018. Especial, p. A14

 

Eleito vai enfrentar efeitos por ciclo de desigualdade do país

Bruno Villas Bôas

29/09/2018

 

 

O candidato que vencer a eleição presidencial vai administrar o país após o pior ciclo de piora da desigualdade social desde a redemocratização. Dados levantados pela FGV Social mostram que entre o fim de 2014 e o terceiro trimestre deste ano, o Índice de Gini da renda do trabalho - que varia de zero a um, sendo zero a distribuição perfeitamente igualitária - saltou de 0,5636 para 0,5915. Foram 11 trimestres seguidos de avanço em bases interanuais, uma sequência de piora que não era vista desde os anos 80.

Este foi o mais recente movimento dos quatro grandes ciclos da desigualdade dos últimos 60 anos, segundo o economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social e autor dos cálculos.

A distribuição da riqueza, tema pouco presente do debate eleitoral, tornou-se ainda mais desigual nos últimos quatro anos, quando a crise afetou a renda dos 40% mais pobres da população. Para especialistas, o próximo presidente terá o grande desafio de enfrentar a desigualdade atacando problema estruturais, com a educação pública ruim, o sistema tributário injusto e aposentadorias privilegiadas.

Entre as propostas dos candidatos à Presidência, estão temas como reforma tributária orientada pela progressividade, reforma da Previdência para combater privilégios, ampliação de programas de transferência de renda (como o Bolsa Família) e geração de empregos formais. Estas são algumas das ideias citadas para reduzir o abismo entre ricos e pobres no país.

O primeiro ciclo de aumento da desigualdade ocorreu nas décadas de 60 e 70, período que Neri batizou de "milagre concentrador". Ele refere-se a uma fase de forte crescimento econômico, acompanhada pela disparidade crescente entre o topo e a base da pirâmide.

De meados da década de 70 a 2001, a desigualdade não teria mostrado uma tendência clara de comportamento. É um período de instabilidade no Índice de Gini e na renda dos brasileiros. "São décadas perdidas na dimensão da renda e da desigualdade, embora o período inclua momentos relevantes, como a abertura política e a estabilização inflacionária, com o Plano Real", diz Neri.

O país entrou em um ciclo de queda da desigualdade a partir de 2001. Nesse período, houve melhor distribuição da renda por meio da geração de emprego, programas de transferência de renda e aumento do acesso à educação. Foi também, por outro lado, o período em que se "semeou" a crise econômica dos anos seguintes.

"O quatro trimestre de 2014 marcou o início do abismo. Primeiro houve aumento da desigualdade acompanhada de perda de renda da população. A partir de meados de 2016 percebemos recuperação da renda média, mas isso não se traduz em melhora de bem-estar para a população porque a desigualdade segue crescendo", afirma Neri.

O Valor consultou as campanhas dos cinco candidatos mais bem colocados nas pesquisas Ibope e Datafolha para conhecer as propostas. Apenas a de Jair Bolsonaro (PSL) não retornou. O programa do candidato no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pouco apresenta sobre o tema. Sugere que o desequilíbrio fiscal gera inflação, que aumenta a desigualdade. E que o debate sobre privatização visa a distribuição de renda.

Segundo colocado, Fernando Haddad (PT) cita em seu programa a necessidade de uma reforma tributária orientada pelos princípios da progressividade e isenção de Imposto de Renda para trabalhadores que vivem de até cinco salários mínimos, sendo que os "super-ricos pagarão mais". Também cita a necessidade de reforçar os investimentos no Bolsa Família e a valorização de salários.

O candidato do PDT Ciro Gomes coloca como prioridade investimento na melhoria da qualidade da educação pública e ampliação de programas sociais, além de assegurar empregos de qualidade. Ele também defende "estabelecer maior progressividade na cobrança de impostos, cobrando menos da classe média e dos mais pobres e mais de quem pode pagar mais".

Já a campanha da candidata da Rede Mariana Silva sugere como caminhos as reformas tributária, da Previdência e ainda iniciativas na área de saúde e educação. O programa de Geraldo Alckmin (PSDB), por sua vez, fala em melhorar a educação pública e incrementar o programa Bolsa Família, aumentando os benefícios para os mais necessitados".

A desigualdade é medida pela distância da renda da parcela mais pobre e da mais rica da população. É possível reduzir a desigualdade, portanto, sem tirar nenhum brasileiro da pobreza - bastaria deixar os mais ricos menos ricos para reduzir a distância. Esse não é, claro, o caminho desejável. O fato é que nenhuma medida isolada seria suficiente para reduzir a desigualdade.

Segundo Neri, todas as medidas têm seu papel na redução da desigualdade. Ele defende maior ênfase nas políticas de renda e reforma da Previdência. "A reforma bem desenhada é a mais urgente para redistribuir renda aos mais pobres, combater entraves fiscais ao crescimento e gerar equidade", diz ele, que foi ministro no governo Dilma Rousseff e hoje não contribui com nenhuma campanha.

Pedro Herculano Guimarães, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), defende um espectro amplo de medidas, como a melhoria na qualidade do ensino público de forma "massificada", além de uma reforma tributária.

"É preciso discutir uma reforma tributária que se preocupe em taxar menos o consumo e serviços e aumentar gradualmente peso de outros tributos, como imposto sobre a renda de algumas aplicações financeiras, lucros e dividendos. Programas de transferência de renda são importantes, assim como a reforma da Previdência e crescimento econômico."

Guimarães coloca em dúvida, contudo, a queda da desigualdade do país nas últimas décadas. Ele é um dos pioneiros no Brasil do uso do método do francês Thomas Piketty para analisar a desigualdade social ao incluir dados de Imposto de Renda nos cálculos do Índice de Gini.

Para Guimarães, houve de fato queda da desigualdade da renda do trabalho, mas houve ao mesmo tempo um aumento dos rendimentos de capital no período de 2006 a 2012. Isso significa que houve um jogo de forças em direções opostas, que tendem a se anular. Para o tamanho da desigualdade de renda do Brasil, portanto, pouco teria mudado ao longo de quase uma década.

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'Igualdade de oportunidades é essencial'

Thais Carrança

Hugo Passarelli

29/09/2018

 

 

Num país que ainda é considerado um exemplo internacional de disparidade social, a redução da desigualdade de oportunidades deveria ter mais espaço nas discussões eleitorais e nos programas dos candidatos à Presidência da República, avaliam Naércio Menezes Filho e Sérgio Firpo, professores do Insper que participaram de dabate sobre o tema na sede do Valor.

Atacar esse problema histórico, cujas origens remontam à escravidão, passa por uma melhora na educação, com avanço de gestão e aplicação de mais recursos, mas também por uma reforma tributária progressiva, defendem. "Sem igualdade de oportunidades vai ser difícil crescermos com produtividade e justiça social", diz Menezes.

A desigualdade de renda no Brasil é tão grande que virou um "exemplo" às avessas no estudo "Desigualdade extrema: evidências do Brasil, Índia, Oriente Médio e África do Sul", publicado neste ano pelos pesquisadores Lydia Assouad, Lucas Chancel e Marc Morgan, da Paris School of Economics - a mesma do economista francês Thomas Piketty.

Naércio Menezes, coordenador do Centro de Políticas Públicas do Insper, diz que presidente eleito vai enfrentar efeitos do pior ciclo de desigualdade do país.
 
No Brasil, a renda média dos 50% mais pobres em 2016 era de € 2.530 (R$ 12.177 por ano ao câmbio atual, ou R$ 1.014 por mês), comparado a € 9.560 nos Estados Unidos e € 14.308 na Europa Ocidental. Enquanto isso, a renda média dos 0,001% mais ricos era de € 28,2 milhões, acima até da europeia (€ 24,5 milhões).

A renda média do 1% de brasileiros mais ricos era 102 vezes maior do que a renda da parcela mais pobre. Na Europa, essa razão era de 29 vezes, enquanto nos Estados Unidos, chegava a 80 vezes.

"Por razões históricas, os ricos no Brasil ganham mais ou menos o mesmo que os ricos na Europa", observa Menezes, que participou de evento no Valor. "Mas os pobres no nosso país ganham muito menos do que os pobres de lá", diz.

Como a mobilidade econômica e social no país é baixa, o sucesso das pessoas na vida é basicamente determinado no momento do nascimento, por fatores como renda, cor da pele, região e nível de educação dos pais. "É a loteria da vida", afirma.

Graças a um peculiar estudo do epidemiologista Cesar Victora, esse quadro pode ser visto com precisão na população da cidade de Pelotas, no interior gaúcho. Ele vem acompanhando todos os nascidos na cidade no ano de 1993 e verificou que, aos 18 anos, 59% daqueles que tinham mães com até quatro anos de estudo já pararam de estudar e somente 2% estão na universidade.

Entre aqueles que nasceram em famílias em que as mães já tinham ensino superior, 48% estão cursando faculdade. A "loteria da vida" mostra que aqueles que já nascem em famílias abastadas têm chances significativamente maiores de alcançar a formação superior e conseguir um bom emprego.

Olhar para o passado ajuda a explicar como chegamos a isso, acredita Menezes. Em 1900, o Brasil tinha 65% de sua população adulta analfabeta, comparado a 10% nos Estados Unidos, embora os dois países tenham sido "descobertos" na mesma época e passado pela experiência da escravidão. "Aqui, os ex-escravos permaneceram analfabetos por um longo período. Esse foi um erro histórico e origem da nossa desigualdade", diz.

Em 1950, o país ainda tinha 50% de analfabetos, quando a taxa nos Estados Unidos já era próxima a zero. Nessa época, enquanto o ensino médio chegava a menos de 5% da população por aqui, nos Estados Unidos a taxa era de 25% em 1940, superando os 50% em 1970. O ensino superior foi de 5% a 10% da população americana neste intervalo, permanecendo em 1% no Brasil ao longo das três décadas.

Com a política de universalização da educação na década de 1990, essa realidade mudou. Se em 1992 um jovem de 22 anos tinha, em média, 6,4 anos de estudo, o número subiu a 10,2 anos em 2015. Como resultado disso, e da política de valorização do salário mínimo, a desigualdade recuou como nunca antes. Indicador que varia de 0 a 1 e é usado para a medir a desigualdade, o Índice de Gini da renda familiar no Brasil caiu de 0,60 em 1995 para 0,52 em 2014 - quanto mais próximo de zero, maior a igualdade nessa medida.

Apesar da melhora na educação, a produtividade seguiu estagnada. Houve um salto de meados da década de 1960 até 1980, como resultado da mudança estrutural representada pelo avanço da urbanização e da indústria. Mas, desde então, ela não saiu do lugar.

Para Menezes, a estagnação está diretamente relacionada à qualidade da educação: "70% dos alunos brasileiros de 15 anos de idade estão abaixo do nível 2 do Pisa", cita, referindo-se ao nível de aprendizagem considerado adequado no Programa Internacional de Avaliação de Estudantes da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Na visão do especialista, mudar essa realidade passa por um avanço na gestão da educação, como sugerem as experiências do município de Sobral, no Ceará, e de estados como Pernambuco, Goiás e Espírito Santo. Mas também é possível gastar mais em políticas de acompanhamento do desenvolvimento infantil.

Para permitir esse gasto e, ao mesmo tempo, atacar a questão da desigualdade, a solução é aumentar impostos para a parcela mais rica da população, defende Menezes. Ele ressalta que o modelo tributário atual onera muito o consumo e afeta mais o estrato mais pobre, enquanto a maior alíquota de Imposto de Renda é de 27,5%, bem abaixo da de outros países.

Assim, uma reforma tributária deveria passar por uma alta dessa alíquota marginal, além da taxação de dividendos, aumento do imposto sobre heranças e eliminação de subsídios e desonerações que beneficiam os mais ricos.

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SP quer indicador de ensino para reduzir defasagem de alunos

Hugo Passarelli

Thais Carrança

29/09/2018

 

 

A forte desigualdade na aprendizagem dos alunos brasileiros exige que os gestores públicos pensem em políticas para amenizar esse cenário, na avaliação de Sergio Firpo, professor do Insper. Para tanto, o pesquisador defende indicadores que procurem não só avaliar o desempenho, mas também medir as diferenças socioeconômicas entre os alunos de uma mesma rede pública.

Com essas informações, exemplifica o especialista, é possível redistribuir recursos para privilegiar o investimento em escolas mais vulneráveis. Ou ainda direcionar professores mais experientes para as unidades educacionais com maior defasagem de ensino.

Firpo está desenvolvendo, em conjunto com a prefeitura de São Paulo, um trabalho que tem esse objetivo. "Estamos começando a discutir a criação de um indicador de desigualdade para garantir que os alunos que estão em escolas com condição socioeconômica pior recebam esforços dos gestores para compensar essa diferença de oportunidades", afirmou o pesquisador durante palestra na sede do Valor, em São Paulo.

"Se há algo está acontecendo na educação brasileira nos últimos anos, não parece ser no sentido de reduzir as desigualdades de oportunidade", disse Firpo. Segundo ele, esse tipo de dado pode ajudar a garantir a reversão desse quadro, para que o sistema educacional público consiga resultados satisfatórios em todos os estratos da sociedade.

Levantamento feito pelo professor do Insper mostra que os níveis de proficiência são maiores nas regiões mais ricas do país e entre os filhos de mães com maior nível de escolaridade, de acordo com o cruzamento de dados da Prova Brasil.

Em 2015, por exemplo, 12,9% dos alunos do 5º ano do ensino fundamental da região Sudeste tinham desempenho em matemática considerado insuficiente, cifra que aumenta para 31,5% n Nordeste. Na outra ponta, 17,1% dos alunos do Sudeste estão na faixa de proficiência considerada avançada, bem acima do nível de 5,1% atingido no Nordeste.

O mesmo acontece quando o recorte é feito pelos anos de estudo da mãe. Em 2015, apenas 7% dos filhos de mãe com ensino fundamental incompleto tinham o grau máximo de proficiência em matemática no fim do primeiro ciclo do fundamental. Entre aqueles cuja mãe tinha estudado ao menos até o ensino médio, este número é de 17,5%.

E, embora os indicadores do 5º ano do ensino fundamental venham melhorando ao longo do tempo em todo o país, em especial a partir dos anos 2000, o avanço é mais pronunciado onde as condições locais e familiares colocam os estudantes em ponto de partida melhor que seus pares de condições desprivilegiadas.

Segundo ele, esse descompasso permite inferir que os ganhos recentes de aprendizagem parecem mais relacionados a investimentos privados em educação, que por sua vez estão relacionados à condição socioeconômica dos membros familiares.

"De maneira geral, o que parece ter acontecido é uma neutralidade dos esforços das redes públicas [na melhora dos níveis de aprendizagem] e uma predominância dos esforços individuais, que acabam acirrando as diferentes circunstâncias sociais", afirma.