O globo, n. 31265, 14/03/2019. Rio, p. 14 e 15

 

Vestígios na internet

Gabriela Goulart

Lucas Altino

14/03/2019

 

 

Suspeito pesquisou arma e Marielle

A investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, ocorrido há exatamente um ano, aponta que a ação começou a ser planejada em 10 de novembro de 2017. O rastreamento de contas de e-mail, sites e aplicativos usados pelo sargento reformado da PM Ronnie Lessa, acusado de ter feito os disparos, descreve, passo a passo, a anatomia do que a polícia chama de “pré-crime”.

A devassa do Núcleo de Busca Eletrônica da Delegacia de Homicídios (DH) da Capital nos arquivos virtuais de Lessa começou em 1º de janeiro de 2017. O objetivo era encontrar pistas que provassem sua participação na execução de Marielle e Anderson. Investigadores montaram uma espécie de quebra-cabeças digital, no qual identificaram os horários em que ele mais usava a internet, compras que realizou e termos procurados em sites. A primeira pesquisa considerada suspeita foi feita em 10 de novembro daquele ano: de acordo com a DH, o policial escreveu, no Google, “submetralhadora HKMP5”. E, até fevereiro de 2018, realizou outras consultas sobre a arma.

O perfil digital de Lessa montado pela DH revela um usuário ativo na internet, com pesquisas feitas até altas horas da noite. E esse comportamento sofreu uma quebra de padrão no dia do crime e no período subsequente. Um compilado de extratos de dados de navegação, vinculados ao telefone do sargento reformado e a contas sincronizadas à dele, traduz esse comportamento quase como num gráfico.

Segundo a investigação, Lessa procurou por diversos “acessórios” relacionados à submetralhadora, incluindo adaptadores, sistemas de chassis de freio de boca e silenciadores. Buscava informações detalhadas. No dia 20 de fevereiro do ano passado, por exemplo, pesquisou especificamente uma “ferramenta para abrir roscas em material metálico”. Também digitou “trilho para montagem de mira de ferro”. Para a polícia, são indícios de que estaria preparando a arma do crime.

A sequência do preparo da ação inclui muitos “depois”.

Compras de equipamentos

Depois da arma, entrou em cena o rastreamento da vítima. No dia 23 de novembro de 2017, o acusado adquiriu, em um site de compras, um rastreador veicular sem fio com bateria de longa duração. O custo: R$ 777,90. A peça foi entregue na casa de Lessa, no condomínio Vivendas da Barra, na Avenida Lúcio Costa 3.100. Segundo investigadores, isso sugere que ele usaria o aparelho para monitorar os passos de Marielle.

Depois do equipamento para acompanhar os roteiros da vereadora, foi a vez de aprimorar a ação propriamente dita. No dia 30 de dezembro de 2017, Lessa pesquisou na internet o termo “adesivo antirradar”'. Obteve como resposta que o produto “pode ser utilizado em placa de veículo automotor para dificultar que radares de fiscalização eletrônica de trânsito consigam detectar os caracteres”.

Depois do adesivo antirradar, outra compra virtual de Lessa chamou a atenção da polícia. Em 8 de janeiro de 2018, ele foi atrás de uma “caixa impermeável para enterrar armas de até 114 centímetros”. Desembolsou R$ 1.399,40, e também recebeu o equipamento em casa. Anteontem, durante o cumprimento de um mandado de busca e apreensão na residência sargento da reserva, policiais encontraram um grande cilindro plástico, igual ao do anúncio do produto. Não à toa, os investigadores também usaram um detector de metais para vasculhar o terreno do imóvel.

No dia 21 de janeiro, Lessa procurou saber “como desfazer a sincronização do Google Chrome”. Segundo a investigação, isso evidencia que ele tinha o objetivo de excluir dados dos servidores, ocultar favoritos e apagar senhas.

O suspeito ainda pesquisou, no dia do crime, sobre a legalidade da utilização de um equipamento chamado Jammer. O aparelho bloqueia sinais de celulares e qualquer atividade feita a partir de um telefone. Para a DH, seu objetivo era impedir a localização, por antenas de telefonia e GPS, do carro usado no assassinato.

A polícia não se limitou a pesquisar dados de Lessa na internet. Analisando imagens de câmeras de segurança e de trânsito, constatou que, nos dias 1º, 2 e 7 de fevereiro, o Cobalt de placa clonada utilizado no duplo homicídio fez o mesmo trajeto do registrado em 14 de março, quando Marielle e Anderson foram mortos no Estácio.

Busca por endereços

Duas semanas antes do crime, em 2 de março, Lessa, segundo a DH, começou a monitorar os passos da vereadora, verificando sua agenda de compromissos e os endereços que costumava ir ou que visitaria. Naquele dia, pesquisou “Avenida Rui Barbosa 10”, no Flamengo. Marielle esteve, durante três horas, em um local a uma curta distância dali, na Rua Martins Ribeiro.

Quatro dias depois, Lessa usou o Google Maps para pesquisar “campus da UFRJ Praia Vermelha”. Marielle participaria de uma aula em um curso pré-vestibular da universidade no Centro — investigadores acreditam que ele se confundiu em relação aos endereços.

No dia 8, o alvo da pesquisa foi a Praça São Salvador, no Flamengo, que fica perto do curso de inglês que ela frequentava. A busca mais surpreendente, segundo a DH, foi feita apenas dois dias antes do assassinato, quando Lessa digitou no Google Maps “Rua do Bispo 227”, que ainda consta no sistema de dados da polícia como residência da vereadora. Naquela data, ela foi até lá para encontrar o ex-marido.

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Numa fração de segundos, tatuagem ficou exposta

Vera Araújo

14/03/2019

 

 

Análises de vídeos nos quais aparece o Cobalt prata que, segundo a DH, era dirigido pelo ex-PM Élcio Queiroz elevava Ronnie Lessa, foi decisiva na identificação do acusado de atirar na vereadora Marielle Franco e no motorista Anderson Gomes. Por meio do uso de raios infravermelhos, integrantes do laboratório de imagens do Ministério Público perceberam a presença de uma grande tatuagem no braço direito do passageiro, que ocupava o banco de trás.

A tatuagem retrata uma espécie de guerreiro, cujo corpo começa pelas costas e se estende até os braços do PM. Apesar de, no dia do crime, ter usado uma luva preta e um manguito (que vai do pulso ao bíceps), o pistoleiro a deixou à mostra num momento de “relaxamento”, quando estendeu o braço direito por cima do banco traseiro do Cobalt. A cena foi gravada na Rua dos Inválidos, no Centro, onde Marielle participava de um debate. Com duração de uma fração de segundo, o gesto foi filmado por uma câmera de segurança da região.

A imagem levou a polícia a buscar fotos e vídeos que mostrassem detalhes da tatuagem do suspeito. Com a ajuda de programas de computadores, eles foram sobrepostos a um “frame” do vídeo feito pela câmera do Centro. A DH conseguiu retratos de Lessa num hospital, tirados após ele sofrer um ataque em 27 de abril do ano passado. Um motociclista atirou num carro em que estavam o PM reformado e um bombeiro, na Barra, pouco mais de um mês depois do assassinato de Marielle e Anderson. O delegado Giniton Lages, responsável pela investigação da morte de Marielle e Anderson, classificou o caso como tentativa de assalto.

Além dos retratos de Lessa hospitalizado, foram analisadas fotos extraídas da nuvem (arquivo on-line) do celular do PM reformado. Foram, então, extraídas imagens de uma luva e um manguito, ambos na cor preta, vestindo o braço esquerdo de um homem. Foi assim que os policiais tiveram a certeza de que o suspeito se tratava do policial militar reformado.

A tatuagem também aparece em fotos nas quais Lessa segura um fuzil e alimenta um de seus dois gatos de estimação numa sala de jantar semelhante à da sua casa.

A DH ainda achou, na nuvem do celular do sargento da PM reformado, um vídeo considerado crucial para a investigação: o filme mostra a posição que ele costuma atirar. Foi possível constatar que, ao usar armas longas, ele apoia o braço esquerdo. De acordo com peritos, foi dessa forma que o assassino de Marielle e Anderson fez os disparos.

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Após o crime, acusados ficaram 4 horas em restaurante da Barra

Arthur Leal

14/03/2019

 

 

Análise da localização de celulares por antenas de telefonia indica que suspeitos estiveram juntos desde a tarde do dia do assassinato

Um rastreamento feito por meio de antenas de telefonia foi fundamental para pôr os acusados de terem assassinado Marielle Franco e Anderson Gomes na cena do crime e desvendar oque aconteceu nas horas anteriores e posteriores à execução. O trabalho detectou o mom entoem que o PM reformado Ronnie Lessa e o ex-policial Élcio Queiroz saíram da Barra, o período de “campana” na Rua dos Inválidos, no Centro, onde a vereadora participava de um evento, e a localização dos suspeitos depois do ataque. Um aspecto de frieza chamou a atenção da Delegacia de Homicídios (DH) e do Ministério Público. Depois do crime, antenas da Barra detectaram a volta dos do isao bairro-elesquatro horas em um restaurante, até a madrugada, quando, enfim, for amparas uascas as.

Às 14h03m do dia 14 de março, quando aconteceu o assassinato, surge a primeira atividade suspeita de Lessa: ele acessou a internet para saber sobre uma manifestação de parentes da menina Maria Eduarda, morta durante uma operação policial em Acari naqu eleano. Mariellea companhava a investigação juntoà família. Já Élcio fez, às 14h43m, a última ligação de celular naquele dia.

Às 16h31m, Lessa fez nova busca na internet. Dessa vez, buscou saber sobre a legalidade e formas de uso do Jammer, uma parelho ilegal, usa dopara neutralizar sinais de GP Se bloquear celulares. Logo depois, às 16h59m, o aparelho de Élcio Queiroz é detectado por antenas no condomínio de Lessa, o Vivendas da Barra. Desse momento em diante, a polícia afirma que eles estiveram juntos até a madrugada do dia seguinte. Uma análise mostra que os telefones cadastrados pelos dois foram deixados no local.

Da campana à volta para casa

A reconstituição da polícia combina esses dados com os de câmeras de rua. Às 17h24m, câmeras filmaram o Cobalt prata utilizado no assassinato de Marielle e Anderson próximo ao Quebra-Mar, na Barra. Esse detalhe é confirmado por uma denúncia anônima que, em outubro do ano passado, incluiu Lessa no rol de investigados, fornecendo detalhes sobre o suposto mandante e o preço do crime encomendado. Às 18h45m, o Cobalt chegou à Rua dos Inválidos, onde, segundo a DH, Lessa e Élcio aguardaram pela saí dada vereadora da Casadas Pretas.

Entre 21h09m e 21h12m, Anderson e Marielle foram mortos na Rua Joaquim Palhares, no Estácio, e, às 22 h11m, antenas de telefonia voltaram a captar um deslocamento do celular de Élcio. O movimento indica que o suspeito foi do condomínio Vivendas da Barra para o restaurante Resenha e Grill, onde chegou às22h30m. Os acusados continuaram juntos: prova disso, segundo a polícia, é que o telefone de Lessa foi detectado pouco menos de uma hora depois no local, às 23h18m.

O estabelecimento era frequentado pelos dois. Os policiais acreditam que Lessa e Queiroz estiveram lá no dia 1º de fevereiro, após Pedro Bazzanella, um amigo em comum, ter prestado depoimento à Delegacia de Homicídios. Lessa ficou no restaurante até 3h47m, quando seu telefone foi localizado na Ave nidadas Américas, próximo ao número 2.000, voltando para o condomínio onde mora, de acordo coma polícia. Élcio, por sua vez, foi“visto” por câmeras da CE T-R iobem depois: às 5h33m, seu Renault Logan prata passou no km 11 da Linha Amarela.

O estudo da movimentação de celulares, a partir das antenas, começou a desenhar adinâmica do crime como aparecimento de Lessa no rol de suspeitos. Ele foi apontado como o homem que fez 13 disparos contra o carro da vereador aedo motorista, em outubro do ano passado. A partir daí, a Delegacia de Homicídios pediu a que brade sigilo de dados telefônicos e telemáticos (referentes a dados de navegação na internet). Por esse caminho, foi possível traçar um perfil comportamental do suspeito, através de buscas na internet, e, também, da localização do seu celular no dia do crime —e no pré-crime —, através da captação, pelas antenas, do IMEI (espécie de identidade) do aparelho.

À polícia, os dois afirmaram não se lembrar o que fizeram entre 17h30m e 23h de 14 de março de 2018.