Título: Jogo de interesses
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Fonte: Correio Braziliense, 01/08/2012, Mundo, p. 16

O ingresso da Venezuela como membro pleno do Mercosul tem alguma semelhança com o dia em que este povo do Brasil elegeu como seu presidente Luiz Inácio Lula da Silva%u201D Hugo Chávez, presidente da Venezuela

"A incorporação da Venezuela fecha definitivamente a equação do que vai ser este século 21: energia, minerais, alimentos, ciência e tecnologia%u201D Cristina Kirchner, presidente da Argentina

"Parece que pobres são eles (os europeus) e nós estamos nos saindo bastante bem. O fato é que nunca tivemos uma oportunidade como esta" José Mujica, presidente do Uruguai

No dia que marcou a primeira ampliação do Mercosul desde a fundação, em 1991, os presidentes de três dos quatro países-membros saudaram ontem a entrada da Venezuela como o início de uma nova etapa que transformará o bloco em potência energética e alimentar. O acréscimo do quinto elemento — o quarto, o Paraguai, está suspenso — muda a geopolítica regional e consolida o Mercosul como quinta maior economia do mundo, atrás de EUA, China, Alemanha e Japão. O ingresso foi oficializado numa cúpula extraordinária, em Brasília, sob a presidência pro tempore do Brasil. A medida passará a ter efeito jurídico somente a partir de 13 de agosto. Ela foi possível graças à suspensão do Paraguai após o impeachment do presidente Fernando Lugo, em junho.

A adesão de Caracas ocorre apesar das críticas em relação à concentração de poder do presidente Hugo Chávez, ao desrespeito aos direitos humanos e a uma forte oposição, dentro e fora da Venezuela. Em 17 de julho, a ONG Human Rights Watch divulgou um dossiê, por meio do qual acusou o chefe de Estado de "intimidar, censurar e processar críticos, em uma vasta gama de casos envolvendo o Judiciário, a mídia e a sociedade civil". Segundo a entidade, o mandatário teria construído um modelo democrático para ameaçar e punir quem interferir em sua agenda política.

Polêmica à parte, os presidentes Dilma Rousseff, Cristina Kirchner (Argentina), José "Pepe" Mujica (Uruguai) e o próprio Chávez enalteceram a importância econômica da decisão para a integração regional, que, segundo eles, dará melhores condições aos países-membros para enfrentar a crise internacional. "Na qualidade de presidenta pro tempore do Mercosul, damos as boas-vindas ao povo venezuelano, por intermédio do presidente Hugo Chávez. Há tempos, desejamos um Mercosul ampliado em suas fronteiras e com capacidades acrescidas", declarou Dilma.

A inserção da Venezuela, pedida em 2006, foi decidida durante a cúpula de Mendoza (Argentina), no mês passado, quando o Brasil assumiu a presidência semestral do grupo, ao mesmo tempo em que foi decidida a suspensão do Paraguai. O país deve voltar a participar de reuniões e deliberações plena após a eleição do novo presidente, em abril de 2013.

Dilma voltou a defender a posição brasileira, favorável à punição do Paraguai sem sanções econômicas. "Os países do Mercosul, assim como os da Unasul, têm agido com o sentido único de preservar e fortalecer a democracia em nossa região", afirmou. Questionado mais tarde, em um evento na Embaixada da Argentina, sobre se a manobra que permitiu o ingresso da Venezuela foi "oportunista", Chávez comparou a situação a um jogo de futebol: "Suponha que Pelé tenha sido suspenso por uma falta que cometeu. O Brasil não pode marcar os gols necessários para ganhar a partida. Não é uma fraude, porque Pelé não jogou por estar suspenso. O Paraguai está suspenso." Em nota, o Ministério das Relações Exteriores paraguaio qualificou o ingresso da Venezuela de "atropelo inaceitável".

Maior produtor de petróleo da América do Sul, a Venezuela, segundo Chávez, poderá diversificar sua economia. "Mais do que as críticas (à entrada da Venezuela ao Mercosul), nos interessa muito sair do modelo petroleiro, impulsionar o desenvolvimento agrícola, o desenvolvimento industrial", comentou. O líder venezuelano comparou o momento vivido pelo bloco à eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, assim como às vitórias de Néstor Kirchner, na Argentina, em 2003, e de Mujica, no Uruguai, em 2009. Chávez foi endossado por Cristina, que ressaltou a ascensão do Mercosul como "polo de poder". "A incorporação da Venezuela fecha definitivamente a equação do que vai ser este século: energia, minerais, alimentos, ciência e tecnologia."

Pela rampa

O protocolo para a reunião no Palácio do Planalto foi mudado minutos antes da chegada dos visitantes: presumivelmente a pedido de Chávez, os três presidentes, que deveriam usar uma entrada lateral, subiram a rampa. Bem disposto, o novo sócio foi o primeiro a ser recebido por Dilma, com 45 minutos de atraso. Na sequência, a presidente recebeu Mujica e, minutos depois, os três mandatários, juntos, recepcionaram Cristina.

Antes da cúpula, Dilma manteve encontros com os colegas da Venezuela e do Uruguai. Com o primeiro, foi assinado o acordo para a venda de seis aviões comerciais E-190 da Embraer, com a opção de compra de mais 14 — o negócio pode alcançar US$ 900 milhões. O ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Fernando Pimentel, afirmou que há "perspectivas muito boas" sobre a importação, pelo Brasil, do petróleo venezuelano.