O globo, n. 31212, 20/01/2019. Mundo, p. 34

 

Lei anti-Maduro

Janaína Figueiredo

20/01/2019

 

 

Oposição prepara mobilização popular e já discute legislação para transição na Venezuela

Enquanto encerram os preparativos do que promete sera maior concentração popular contra o governo dop residente Nicol ás Maduro desde 2017 — convocada para 23 de janeiro ejá considerada entre opositores um novo dia D em sua disputa com o Palácio de Miraflores —, adversários do chefe de Estado discutem em ritmo frenético um projeto da “Lei do Estatuto que Regerá a Transição à Democracia e ao Restabelecimento da Vigência da Constituição”.

O texto é um plano de voo que começaria a ser implementado após o dia 23, quando a oposição conseguir, em palavras de analistas locais, “voltar amostrar músculo popula redar um contundente recado ao país, à comunidade internacional e, sobretudo, às Forças Armadas”. Em uma de suas versões preliminares, à qual O GLOBO teve acesso, fala-se na designação por parte da Assembleia Nacional (AN) — desconhecida por Maduro e respaldada por mais de 40 países — de um Conselho Nacional para a Transição Democrática, nomeação de embaixadores no exterior e em assumir “a gestão e defesa dos ativos da República Bolivariana da Venezuela e de seus entes no exterior, especialmente contas bancárias, recebimento de pagamentos financeiros ao Estado e administração da dívida externa”.

A escolha do dia 23 é simbólica: nessa data, em 1958, foi derrubado o ditador Marcos Pérez Jimenez. O futuro da oposição e do projeto de lei depende, segundo especialistas, da imagem que surgirá das ruas nesse dia. Uma adesão expressiva da população impulsionará a ofensiva liderada pelo novo presidente da AN, Juan Guaidó, de 35 anos, o mais cotado para liderar o que a oposição espera ser uma transição com a saída de Maduro.

Participação dos EUA

O documento de quase 20 páginas está circulando entre opositores e vem sendo debatido com governos estrangeiros. A participação dos Estados Unidos e do Brasil é central. Em Caracas, comenta-se que a redação do documento, que ainda gera discussões internas, contou com o ativo envolvimento do encarregado de negócios dos EUA, James Story. O protagonismo americano tem explicação: se transformar este plano de voo em realidade, a oposição precisará de recursos econômicos.

Segundo a analista Argelia Rios, “esta é uma situação inédita, porque a Constituição venezuelana não prevê o que fazer em caso de usurpação do poder”. A usurpação, denunciada pela oposição e por governos do continente, estaria ocorrendo desde 10 de janeiro, quando terminou o mandato iniciado por Maduro em 2013. Dado o não reconhecimento das eleições presidenciais de maio passado por vários países, opositores e governos estrangeiros consideram que o chefe de Estado está exercendo uma Presidência ilegítima.

— Guaidó reativou a oposição e entusiasmou muitos venezuelanos. Ainda não está claro se ele seria uma espécie de presidente de transição, mas, como está à frente do Parlamento, será quem comandará o processo. AANén ossa única instituição legítima e deverá exercer as funções de governo se esta estratégia avançar —explicou Argelia. Mas existem divergências.

O Tribunal Supremo de Justiça (TSJ) no exílio, cujo presidente, Miguel Ángel Martín, participou de reuniões em Brasília quinta e sexta-feira, incluindo com o presidente Jair Bolsonaro (PSL), considera já existir um vazio de poder na Venezuela que justifica, segundo a Constituição, a designação de um “presidente encarregado”. Consultado, Martín disse estar informado do projeto de lei, mas admitiu que “essaéa estratégia do setor político da oposição ”.

—Nós, juristas, temos uma visão diferente, e eu disse ao governo brasileiro que o que corresponde é que Guaidó assuma a Presidência. Éo que Brasil e EUA estão esperando e vão reconhecê-lo.

O presidente da AN pertence ao partido Vontade Popular (VP), liderado por Leopoldo López, em prisão domiciliar. O número dois do VP, Carlos Vecchio, está exilado nos EUA, e o número três, Freddy Guevara, refugiado na Embaixada do Chile em Caracas. Guaidó estava no lugar certo, na hora certa e foi, praticamente por descarte, o escolhido por López para assumir o comando do Parlamento, que este ano correspondia aseu partido.

O jovem engenheiro, formado na Universidade Católica e nascido numa família de classe média baixa do estado de Vargas, surgiu como uma liderança estudantil em 2007, ano em que o então presidente Hugo Chávez enfrentou uma onda de protestos promovidos pelas universidades.

—Guaidó foi uma surpresa e está conseguindo unira oposição, apesar de algumas divisões que ainda existem. É um rosto novo, que devolveu certa credibilidade perdida aos opositores — comentou Margarita López Maya, professora da Universidade Central da Venezuela (UCV). Nas últimas semanas, o presidente da ANfo ia figura central nas reuniões populares que estão sendo realizadas nas principais cidades, cada vez com maior adesão.

— Ainda predomina a classe média, porque os mais pobres dependem de dinheiro e ajuda do governo — afirmou Margarita.

Temor de mais repressão

Mas já foram realizadas reuniões em bairros humildes de Caracas com expressiva participação popular. Na visão de Carlos Romero, também professor da UCV, a “AN será o principal instrumento da oposição nesta nova etapa”. Ontem, Guaidó reuniu-se com os embaixadores da União Europeia em Caracas. O bloco propôs um Grupo de Contato Internacional para encontrar uma saída à crise no país.

— Guaidó conseguiu instalar um clima de esperança, depois de mais de um ano de depressão nacional entre os opositores. Veremos o que acontece depois do dia 23 —apontou.

O temor de um novo ciclo de repressão é grande. O próprio Guaidó já foi alvo de uma tentativa de detenção pelo Serviço Boliviariano de Inteligência. Nas atuais circunstâncias de violência no país, os riscos são enormes.