Correio braziliense, n. 20304, 23/12/2018. Brasil, p. 7

 

Sem avanços para uso medicinal da maconha

Otávio Augusto 

23/12/2018

 

 

Mesmo um ano e dois meses após ter concluído um estudo técnico, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) não liberou a importação de sementes para o cultivo medicinal da maconha. Para se ter ideia da morosidade, o México iniciou esse processo depois da equipe brasileira e já definiu o trâmite para a compra e o semeio da planta. Aqui, estudos técnicos estão prontos desde outubro de 2017. A regulamentação garantiria a associações e familiares de pacientes maior facilidade para o uso terapêutico. O Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Psiquiatria são contra.

O uso medicinal da maconha tem crescido no mundo, criando alternativas de tratamento para doenças como câncer cerebral, esquizofrenia, esclerose múltipla, hidrocefalia, epilepsia e convulsões. No Brasil, mais de 80 mil unidades de produtos à base da planta foram importados desde janeiro de 2015, quando a Anvisa liberou o uso médico-hospitalar de canabidiol. Quase 3 mil brasileiros conseguiram a licença para a compra neste período.

Importar esses produtos é complicado e caro. Alguns medicamentos podem custar R$ 3 mil por frasco. O primeiro passo para quem tem interesse no tratamento é conseguir uma receita especial com o médico. Depois disso, terá de enfrentar diversas etapas de autorização na Anvisa para a importação. Com a liberação em mãos, é possível comprar os produtos em sites internacionais e encaminhar a permissão de entrada no país para a Receita Federal. Em alguns casos, o prazo se arrasta por mais de um ano.

Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Holanda, França, Espanha, Itália, Suíça, Israel e Austrália são nações que apostaram no uso científico e na potencialidade de cura do uso da maconha e seus derivados. Na Califórnia, o uso foi autorizado em 1996 por meio de uma proposição de iniciativa popular. Há três anos, a Anvisa possui um grupo de trabalho com o objetivo de esclarecer os requisitos de segurança e de controle para o cultivo da planta e propor uma regulamentação para esse tipo de atividade. Contudo, poucos avanços foram implementados e recorrer ao Judiciário é o caminho para maioria das famílias.

Pai da primeira brasileira autorizada judicialmente a importar um derivado da cannabis para uso medicinal, Norberto Fischer enfrentou até 80 crises convulsivas por semana de sua filha Anny, diagnosticada com uma rara síndrome sem cura, a CDKL5. O medicamento deu à menina qualidade de vida. Ancorado em sua experiência, ele pede celeridade nos processos. “O prejuízo para as famílias ocorre em todos os sentidos. O Brasil perde em ganho de impostos, em avanços científicos e em desenvolvimento. Vamos continuar dependentes de outros países”, critica.

 

Agenda

O governo brasileiro tem uma agenda regulatória para o período 2017-2020. Antes de deixar o cargo, o diretor-presidente da Anvisa, Jarbas Barbosa, tentou avançar na regulamentação. Pediu celeridade ao processo que considera lento e ressaltou, por meio de procedimento interno, a urgência de as propostas serem avaliadas pela direção colegiada do órgão. Barbosa deixou o cargo em julho. No lugar dele, assumiu William Dib. O Correio procurou a Anvisa, que não comentou o caso.

Fischer está descrente com a agenda regulatória 2017-2020. “Espero que com o próximo governo tenhamos mais visibilidade política para esse processo. Vamos avançar, sem dúvidas, independentemente do governo. O mundo está caminhando para isso. Está provado cientificamente que traz benefícios. Não há mais dúvidas”, adverte. O pai de Anny emenda. “Se houvesse a descriminalização e a regulamentação, famílias não precisariam recorrer ao tráfico para tratarem os doentes. Pessoas de má-fé já produzem drogas e vendem no mercado para fins recreativos. A situação para fim terapêutico é outra”, conclui.

Na Anvisa, duas regulamentações, uma de cultivo da maconha e plantas controladas para pesquisa, e outra específica da droga para fins comerciais são debatidas. As propostas foram elaboradas pela área técnica da agência. As normas permitiriam que instituições públicas e privadas cultivem e desenvolvam medicação à base da planta no Brasil. A pesquisa com maconha e seus derivados é permitida no país. Contudo, os cientistas dependem de importações e os estudos precisam de autorização do órgão.