O globo, n. 31133, 02/11/2018. Rio, p. 9

 

Caso Marielle: investigação é investigada

Hico Otavio

Vera Araújo

André de Souza

02/11/2018

 

 

Polícia Federal entra no caso para apurar supostas tentativas de obstrução

Após pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), a Polícia Federal vai entrar no caso Marielle para apurar se agentes públicos estão obstruindo as investigações sobre a execução da vereadora e de seu motorista. Em entrevista ao GLOBO, publicada ontem no site, pouco antes do anúncio da entrada da PF na história, o miliciano Orlando de Curi cica, suspeito de envolvimento no duplo homicídio e preso em Mossoró (RN), acusa integrantes da Polícia Civil de receber propina da contravenção para não elucidar crimes no Rio. APolícia Federal vai apurar se agentes públicos estão obstruindo a investigação do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, cometido em 14 de março deste ano. A entrada da corporação no caso foi pedida ontem à tarde pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e anunciada pelo ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann. Algumas horas antes, O GLOBO havia publicado, em seu site, uma entrevista do miliciano Orlando de Oliveira Araújo, o Orlando de Curicica, na qual ele acusa a Polícia Civil do Rio de não querer elucidar o crime. Suspeito de envolvimento no homicídio e preso na Penitenciária Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, Orlando acusou delegados e inspetores de receberem propina da contravenção para não investigar assassinatos.

Orlando deu a entrevista por escrito, com autorização da direção do presídio. Ele negou ter participação no atentado e afirmou que existe, no Rio, “um batalhão de assassinos agindo por dinheiro da contravenção”. “A Divisão de Homicídios e o chefe da Polícia Civil, delegado Rivaldo Barbosa, sabem quem são (os assassinos), mas recebem dinheiro de contraventores para não tocar ou direcionar as investigações, criando assim uma rede de proteção para que a contravenção mate quem quiser”, escreveu Orlando, que também acusou a Delegacia de Homicídios da Capital de coagi-lo a assumir o crime.

Delegado nega acusações 

Na entrevista, o miliciano, que foi preso por porte ilegal de arma e responde a vários processos criminais, confirmou acusações que havia feito durante um depoimento prestado em setembro ao Ministério Público Federal. “Diga, nos últimos anos, qual caso de homicídio teve como alvo de investigação algum contraventor?”, provocou Orlando, que lembrou o assassinato de Marcos Vieira de Souza, conhecido como Falcon. Presidente da Portela, ele foi morto com vários tiros em setembro de 2016, sem que o homicídio tenha sido esclarecido. Segundo o miliciano, a investigação “foi deixada de lado” após o pagamento de “um extra”.

O delegado Rivaldo Barbosa rebateu as acusações por meio de uma nota. Ele destacou que repudia “a tentativa de um miliciano altamente perigoso, que responde a 12 homicídios, de colocar em risco uma investigação que está sendo conduzida com dedicação e seriedade”. “Ao acusado foram dadas amplas oportunidades pela Polícia Civil para que pudesse colaborar com as investigações do duplo homicídio dentro do estrito cumprimento da lei”, diz um outro trecho do comunicado.

Raul Jungman convocou uma entrevista coletiva, em Brasília, para dizer que, além de abrir um inquérito sobre uma suposta obstrução da investigação da morte de Marielle e Anderson, a Polícia Federal foi encarregada de proteger duas pessoas que prestaram depoimentos referentes ao crime. Elas não foram identificadas pelo ministro da Segurança Pública.

— Recebemos hoje (ontem) uma requisição da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, para que fosse instalado um inquérito para investigar as gravíssimas acusações feitas em dois depoimentos colhidos por procuradores federais. Essas denúncias são extremamente graves, e acusam a existência de uma organização criminosa envolvendo agentes públicos de diversos órgãos, milícias e a contravenção para impedir, obstruir, desviar a elucidação do homicídio de Marielle Franco e Anderson Gomes —disse Jungmann.

De acordo com o ministro, serão apurados delitos de organização criminosa, coação no curso do processo, fraude processual, favorecimento pessoal, patrocínio infiel, exploração de prestígio e falsidade ideológica, além de fraude e corrupção. Segundo Jungmann, essa investigação não interromperá a que já está em curso na Polícia Civil do Rio:

— A investigação (do homicídio) de Marielle continua em nível estadual. Continua com a Polícia Civil e Ministério Público estadual. O que estamos fazendo é a criação de um outro eixo, que vai investigar aqueles que, sejam agentes públicos ou pessoas ligadas ao crime organizado e a interesses políticos, estão procurando fazer de tudo para impedir a elucidação do crime. É uma investigação da investigação.

Questionado se havia indícios de envolvimento de integrantes da Polícia Civil ou do Ministério Público estadual nas supostas tentativas de obstrução da investigação, Jungmann disse que não poderia dar detalhes. Ele também afirmou não ser necessária uma medida que evite a possibilidade de destruição de provas, já que estão “devidamente registradas e catalogadas”.

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Mãe da vereadora reage à notícia com surpresa

Ludmilla de Lima

02/11/2018

 

 

Marinete Silva diz que estava confiante no trabalho da Polícia Civil, mas aprova a participação da PF no caso

Mãe de Marielle Franco, a advogada Marinete Silva reagiu com surpresa à notícia de que a Polícia Federal vai apurar supostas tentativas de obstrução da investigação do assassinato de sua filha e de Anderson Gomes. No mês passado, as famílias da vereadora e do motorista tiveram uma reunião com policiais civis que atuam no caso e manifestaram satisfação com o andamento do trabalho. No entanto, Marinete elogiou a medida tomada pela procuradora-geral da República, Raquel Dodge, e pelo ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann.

— Eu fico muito surpresa (com as denúncias), porque estava tendo confiança no trabalho. Venho acompanhando a investigação de perto , os delegados nos receberam muito bem e falaram até onde podiam (sobre a apuração do caso). Parecia que vinha tudo caminhando, entre aspas, bem —disse Marinete, para quem a investigação da Polícia Federal é positiva. —Se for para somar, já que o caso Marielle é emblemático, vale a pena.

Deputado pede integração

Apesar de negar participação no crime, Orlando de Curicica afirmou que o assassinato visava a atingir o deputado federal eleito Marcelo Freixo (PSOL), mas não explicou o motivo. Segundo o parlamentar, cabe à polícia provar que o miliciano fala a verdade:

— É uma gravíssima denúncia, que deve ser investigada. Não sabemos se é verdade ou mentira. É importante a cooperação entre as polícias (Civil e Federal). O que a gente espera, mais que uma disputa, se federaliza ou não a investigação, é um trabalho em conjunto.

Freixo disse ainda que é preciso saber se há alguma evidência de que o crime tinha mesmo o objetivo de atingi-lo:

— O que ele (Orlando) acha não me interessa. O que me interessa é o que ele sabe. Isso ainda não está claro. Muita gente diz um monte de coisas, mas precisa provar.

Após a coletiva de Raul Jungmann, o Ministério Público estadual divulgou uma nota na qual ressaltou que “a cooperação da Polícia Federal e de qualquer outro órgão público é bem-vinda, de modo a unir esforços na elucidação de tão bárbaros crimes como os assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes”.

O Ministério Público afirmou ainda que vem exercendo com firmeza o controle externo da atividade policial, no que se refere ao inquérito instaurado para apurar as denúncias de obstrução da investigação. Além disso, destacou que não teve acesso aos dois depoimentos citados nas declarações de Jungmann e espera receber, em breve, o compartilhamento de seu conteúdo. Por fim, o órgão lembrou que promotores do estado também foram à Penitenciária Federal de Mossoró para ouvir um depoimento de Orlando Curicica.