O globo, n.31114 , 14/10/2018. Sociedade, p.29

Cerrado em risco

Ana Lucia Azevedo

 

 

A repórter viajou a convite da Conservação Internacional

O Cerrado é o lugar onde a sabedoria popular se materializa em planta. Lá as aparências, de fato, enganam. Onde se veem arbustos de galhos retorcidos há o mais importante sistema de captação e reserva de água do Brasil fora da Amazônia. Um sistema baseado em vegetação e que garante nove das principais bacias hidrográficas do país. Ameaçado pela expansão do agronegócio, reduzido a cerca da metade de seu tamanho original, ele agora caminha para a maior extinção de plantas já registrada no mundo, com consequências para a oferta de água e a regulação do clima do centro-sul do país, alerta um estudo.

Principal autor da pesquisa publicada na “Nature Ecology & Evolution”, Bernardo Strassburg, diretor do Instituto Internacional para a Sustentabilidade, salienta que mesmo que o desmatamento parasse hoje, sem restauração, perderemos 657 espécies de plantas em função dos 46% que já foram desmatados. Se o desmatamento continuar no ritmo atual, a perda será de 1.140 espécies até 2050. Até hoje, foram documentadas extinções de 139 espécies de plantas no mundo.

Os valores são, respectivamente, 4,7 vezes e 8 vezes maiores do que aquilo que já foi registrado desde 1500.

— Um hectare desmatado de Cerrado tem mais impacto hoje do que um hectare desmatado na Amazônia. Não se trata de impedir a produção agrícola. Ao contrário, ela pode aumentar sem precisar desmatar mais —frisa Strassburg. Segundo ele, só em áreas degradadas pela pecuária há 76 milhões de hectares. E a pecuária extensiva registra só um boi por hectare enquanto o viável seriam três. Essas áreas poderiam ser convertidas para a agricultura.

 

FLORESTA INVERTIDA

O Cerrado é uma floresta invertida. Um terço da estrutura das plantas está acima da superfície. Em muitos casos, as raízes sob o solo são até 20 vezes maior que aquilo que há sobre a superfície, diz Ricardo Aydar, da Ruraltins, o instituto de desenvolvimento rural do Tocantins, estado com a maior extensão preservada de Cerrado contínuo do Brasil:

—A vereda de buritis é a torneira, o cano é a mata de galeria. A caixa d’água fica nos chapadões, onde acontece a infiltração da chuva. Quando se coloca soja e gado nas chapadas, muda toda a dinâmica. O Tocantins está no coração do Matopiba, região que compreende ainda as áreas de Cerrado de Bahia, Maranhão e Piauí e é a maior fronteira agrícola da Terra. —As pessoas não valorizam porque não veem nem a metade do que o Cerrado representa — diz Mercedes Bustamante, do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB). Considerado a savana de maior biodiversidade do mundo, o Cerrado tem aproximadamente 13 mil espécies de plantas, e 40% delas das quais só existem lá, afirma Fabio Scarano, da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS).

Nos campos do Tocantins, o verde das folhas novas parece querer refrescar o calor do Cerrado, a cada ano mais quente. Mas o climatologista Carlos Nobre, do Instituto de Estudos Avançados da USP, diz que o Cerrado é o bioma onde mais se esquenta no Brasil. Só o Matopiba está 1,5 grau Celsius, em média, mais quente do que há 50 anos. Quando o Cerrado é desmatado,a temperatura do solo aumenta. Isso gera um ciclo vicioso que faz com que a evaporação também cresça e, assim, diminua a água no solo. O que é ruim para a agricultura e para a recarga dos três aquíferos do Cerrado —Urucuia, Bambuí e Guarani — dos quais dependem os rios da região.

No leste do Tocantins, no Jalapão, unidades de conservação protegem os maiores remanescentes do bioma. A região é conhecida como deserto. Lá, mais uma vez, a aparência e o nome enganam. O Jalapão fica sobre o aquífero Urucuia e recebe água de afluentes de rios como o Tocantins. A abundância se manifesta no Cânion do Sussuapara, onde chove o ano inteiro, todos os dias. A chuva não vem do céu, mas das raízes das árvores.

A vegetação mistura mata de galerias, de beira de rios, com as composições mais típicas do Cerrado. Estão ali o rosa do cega-machado, o roxo da sucupira, o branco e o amarelo dos ipês. Conceição Alves da Silva, de 49 anos, o Ceiço do Fervedouro, conhece o Jalapão como poucos. Dono do Fervedouro das Bananeiras — piscina natural onde rios subterrâneos emergem —ganha a vida com o turismo.

Nos campos mais profundos, Ceiço vez por outra se depara com uma lombo preto, o nome como a onça preta é conhecida por ali. A mata do Jalapão revela ainda o Cerrado original,com todos os quatro tipos de veados brasileiros (pantanal, catingueiro, galheiro). Há lobos-guarás, raposas, gatos selvagens, jaguatiricas. Até mesmo a anta,o maior herbívoro brasileiro, não é rara ali. O motivo é um só: água. — Aqui tem água para todo lado —diz Ceiço.