Valor econômico, v. 19, n. 4500, 10/05/2018. Legislação & Tributos, p. E2.

 

Direito à moradia, esse desconhecido

Thiago Acca

10/05/2018

 

 

Situações como o desabamento do edifício Wilton Paes de Almeida no Centro de São Paulo, que estava sendo utilizado de modo improvisado como moradia por centenas de pessoas, traz à tona o debate sobre milhões de brasileiros que não conseguem financiar um local adequado para sua própria residência. Diante dessa tragédia, uma avalanche de textos, opiniões, interpretações vêm surgindo. Discussão que parece sempre chegar tarde, pois eclode de modo disseminado somente em momentos de crise.

Seja como for toda essa comoção é traduzida em leituras políticas e jurídicas que desaguam em discursos divergentes e irreconciliáveis. Por um lado, há quem destaque a incompetência das autoridades e a legitimidade das ocupações com base, entre outros fundamentos, no direito à moradia. Por outro, há quem recrimine esse tipo de estratégia empregada pelos movimentos sociais para reivindicar direitos e saliente que o direito à moradia não autoriza as ocupações.

Todos esses discursos carecem de uma proposta para a mudança da realidade social. Entre a indignação com o poder público, a crítica aos movimentos sociais e as distintas interpretações acerca do direito à moradia permanecemos exatamente como estamos, ou seja, com um gravíssimo problema social que teima em fustigar os mais pobres. Vamos aos números.

(...)

Segundo a Fundação João Pinheiro, em 2011 o déficit habitacional era de 74,3% na Região Metropolitana de São Paulo para aqueles que detinham uma renda familiar de até três salários mínimos. Esse déficit saltou para 80,2% em 2014. Interessante notar como o problema está fortemente localizado nos grupos com renda muito baixa. Considerando a faixa de renda familiar de mais de três até cinco salários mínimos o déficit habitacional foi de 14,1% em 2011 caindo para 12,5% em 2014.

Sem dúvida, esse é um problema social complexo que não terá sua realidade alterada repentinamente. No entanto, de acordo com os números levantados, além de não estarmos melhorando, pelo menos para os grupos economicamente mais vulneráveis, a tendência é de agravamento do cenário. Não é por ausência de uma garantia explícita de direitos que essa situação se encontra da forma como está. O direito à moradia foi incluído no art. 6º da Constituição, mas também há previsão expressa no art. 23, IX de que compete à União, aos Estados e aos municípios a "melhoria das condições habitacionais".

Não bastasse o que já dispõe a própria Constituição, o Brasil é signatário do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais que estabelece em seu art. 11 o direito de toda pessoa e de sua família a uma moradia adequada.

A concretização desses comandos legais enfrenta sérias dificuldades. À conclusão distinta não se poderia chegar dado o colapso da habitação popular no Brasil. O direito nessa equação fica seriamente comprometido em decorrência tanto da interpretação que se faz dos direitos sociais quanto do nosso modelo de justiça.

Os direitos sociais são interpretados sob um viés individualista, isto é, eles são aplicados não para a coletividade e sim para os indivíduos. Exemplifico.

Quando se demanda direito à saúde ao Judiciário, este o interpreta como se a cada um fosse devido o tratamento ou o medicamento mais efetivo independentemente de qualquer consideração do custo suportado pelo orçamento público ou ainda dos efeitos que essa decisão individual possa ter para o sistema de saúde como um todo.

O desenho institucional do Judiciário e das regras processuais não são capazes de fornecer o ferramental adequado para que os direitos sociais sejam aplicados como uma forma de auxiliar no planejamento de políticas públicas. No momento em que a aplicação do direito à moradia impõe necessariamente decisões de ordem discricionária, com a necessidade de aplicar um raciocínio de custo/benefício e verificar quais os grupos devem ser atendidos em primeiro lugar o Judiciário e os juristas refugam.

Ao se negar a necessidade de ressignifição do direito e do papel do Judiciário a aplicação do direito à moradia além de inócuo, como se mostrou até agora, poderia até agravar o quadro de desigualdade social. Isso porque, por exemplo, ao se ignorar critérios de priorização para atender determinados grupos poderíamos estar contemplando justamente aqueles que necessitam menos haja vista que o déficit habitacional ocorre em todas as faixas de renda e que o acesso à justiça é desigual.

A indagação volta como em um eterno retorno: qual a saída? Aproximar direito e planejamento. Admitir, de uma vez por todas, que o direito pode exercer uma missão essencial como um vetor a provocar um debate institucional sobre temas como a habitação popular. O Judiciário agiria como uma instituição a criar um local de fala para os mais vulneráveis sem descurar da necessidade de trazer as autoridades competentes para o processo a fim de que tragam a lógica da política pública, do que seria possível fazer em determinado contexto, em justificar os prazos para propor uma solução para o problema.

Não estou supondo, de forma alguma, que todo o problema se esvairá como mágica a partir desse modelo de solução de conflito. No entanto, essa interpretação de que o direito pode impor uma agenda de debate e exigir um planejamento das autoridades competentes tem o benefício de dar voz aos grupos sociais mais vulneráveis e ao mesmo tempo compreender os direitos sociais como meios para auxiliar uma mudança real em face de uma desigualdade social crescente.

 

Thiago Acca é doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP, pesquisador do Centro de Direitos Humanos e Empresas (CDHeE) da FGV Direito SP

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