O globo, n. 30961, 14/05/2018. O Globo, p. 12

 

Ajuste necessário

14/05/2018

 

 

O foro privilegiado não é invenção brasileira, uma jabuticaba. Longe disso. Existe em várias democracias maduras, e com sólidas justificativas. Faz todo sentido proteger inquérito, denúncia e julgamento de autoridades públicas de interferências indevidas, diretas e indiretas.

O presidente da República, ministros, entre outros personagens de forma inexorável envolvidos no jogo de poder e disputas político-partidárias, precisam ser blindados contra litigâncias de máfé e qualquer pressão originada neste tipo de embate. O conflito é a norma na democracia, mas a característica da independência do Judiciário precisa ser preservada em qualquer circunstância. E no caso de autoridades, isto é feito destinando acusações contra elas a instâncias do Judiciário protegidas de qualquer tipo de pressão espúria.

Distorção que houve no Brasil, por herança da ditadura militar, foi a blindagem excessiva dos agentes públicos. Devido ao legado da experiência com o arbítrio, na reconstrução democrática foi criada uma superproteção para políticos e autoridades em geral. Entende-se, mas estabeleceu-se uma distorção.

A primeira instância, na prática, ficou reservada para o cidadão comum, enquanto os “colarinhos brancos” foram distribuídos entre os tribunais de Justiça, o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo, cada uma das instâncias com sua miríade de recursos protelatórios. A estimativa é que haja 50 mil privilegiados no Brasil com foro especial. Contam-se nos dedos os que estão ou foram presos.

Tudo funcionava sem ruídos até que se iniciou, no início dos anos 2010, o histórico ciclo de repressão à corrupção nos altos escalões da República, com o julgamento do mensalão do PT. Houve condenações, e penas foram executadas contra poderosos, porque o julgamento de todos ficou com o Supremo, a última instância da Justiça brasileira. Houve embargos infringentes (novo julgamento) e embargos de declaração (dúvidas de interpretação de acórdão, sem alterar o veredicto), mas as sentenças terminaram sendo executadas. Grande ineditismo.

Com o lançamento da Lava-Jato, em março de 2014, tudo ficou claro: a concentração indiscriminada de foro no Supremo, por exemplo, ajuda a impunidade, porque, da forma como era aplicada a prerrogativa, todas as denúncias, por exemplo, contra deputados e senadores, inclusive de crimes considerados comuns, iam para a Corte. Constatou-se que se tratava de eficiente mecanismo de geração de impunidade, por prescrição de prazos.

Se considerarmos que combater a impunidade é básico para a defesa do estado democrático de direito, a decisão do STF de reduzir a cobertura do foro para deputados e senadores é positiva. Transferir para a primeira instância toda denúncia que não tenha ligação com o mandato e a função do parlamentar é saudável. No caso, o STF tomou uma decisão consciente, amadurecida depois em longa discussão.

Mas o Congresso delibera sobre uma redução drástica do foro, e isso também precisa ser considerado, para evitar choque de poderes.

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Imprecisa e intempestiva

Cláudio Henrique da Cruz Viana

14/05/2018

 

 

O foro por prerrogativa de função, como adotado no Brasil, é incompatível com a concepção de estado democrático e republicano de direito. O instituto tornou-se disfuncional quando passou a chancelar um privilégio odioso: a existência de cidadãos de primeira e de terceira classe perante a lei e a Justiça. A prerrogativa de foro não deveria ser considerada um salvo-conduto para criminosos em busca de proteção em cargos ou mandatos eletivos, mas sua amplitude deturpou o instituto. No Rio de Janeiro, por exemplo, os vereadores têm a prerrogativa de serem julgados pelo Tribunal de Justiça, independentemente da natureza do crime praticado. Realmente um despropósito que foi levado ao STF em 1991 e até hoje não foi decidido.

Recentemente a Suprema Corte decidiu por limitar a prerrogativa de foro. Tentou avançar em prol da equidade contra privilégios, abrindo uma dinâmica positiva de superação da impunidade e de afirmação do conceito de República. Contudo, ao restringir o foro por prerrogativa de função sem alinhavar de forma inequívoca o balizamento do que fica e do que sai da competência dos Tribunais, restou uma decisão que desconstruiu, sem colocar nada no lugar, trazendo mais dúvida do que solução. Interpretações abertas e imprecisas, sujeitas elas próprias a reinterpretações, não geram pacificação de conflitos, ao contrário, produzem insegurança jurídica.

Nunca é demais lembrar que o Poder Judiciário existe para compor os conflitos de interesses e definir situações jurídicas controversas, não para criar mais desentendimentos, menos ainda contendas entre suas próprias instâncias. Na hipótese da prisão a partir do segundo grau, conseguiu uma definição. Mas, em relação à restrição do foro, depois da decisão do Supremo, muitas dúvidas continuam e outras surgiram. O que são crimes praticados em razão do cargo a justificar o foro especial? Todas as autoridades que hoje têm a prerrogativa (ou escancarado privilégio) devem ser contempladas? Cada Tribunal interpretará a questão de um jeito? Quantos recursos ainda virão?

Registre-se que há situações em que, para preservar a isenção do julgamento de autoridades públicas, com poder de influência, é preciso apreciação do fato por instância superior e colegiada. Um juiz de direito, que para progressão na carreira depende de decisões administrativas de desembargadores, poderá julgá-los com a isenção que se espera? Não estará sujeito a pressões do próprio Tribunal ao qual está vinculado?

Por fim, estamos às vésperas de eleições gerais. Enquanto candidatos se lançam à eleição, processos vão passear de um lado para o outro, sem que se saiba ao certo qual o órgão do Judiciário competente para julgá-los. Decisões imprecisas e intempestivas não contribuem para o fortalecimento do estado de direito, ainda que deem a impressão oposta.