Valor econômico, v. 04, n. 4475, 04/04/2018. Política, p. A5.

 

STF deve acatar pedido da defesa de Lula

Maíra Magro 

04/04/2018

 

 

A percepção majoritária ontem nos bastidores do Supremo Tribunal Federal (STF) era de que a Corte tende a mudar, esta tarde, a atual jurisprudência que permite a prisão após a condenação em segunda instância. Os ministros retomam hoje o julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que gera pressão sem precedentes no STF. A expectativa é que o pedido da defesa seja acatado, pelo menos parcialmente. O resultado deve valer como precedente para todos os casos semelhantes no Judiciário, o que poderá favorecer políticos de todos os partidos implicados na Operação Lava-Jato.

Fontes ligadas a ministros que defendem a execução antecipada da pena, com a manutenção do entendimento atual, se mostravam pessimistas ontem. Esses interlocutores identificavam, com apreensão, um forte movimento para reverter a jurisprudência e "acabar com a Lava-Jato".

Ao mesmo tempo, na corrente que defende a alteração da jurisprudência, o clima era de otimismo. Fontes vinculadas a ministros para quem a prisão só pode ocorrer com o trânsito em julgado (esgotamento de todos os recursos no Judiciário) diziam acreditar que o STF deve rever seu entendimento.

Uma possibilidade seria a Corte adotar o caminho do meio, concedendo em parte o habeas corpus a Lula. A solução passaria por autorizar o cumprimento da pena antes do trânsito em julgado, mas só após a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), uma espécie de terceira instância.

Essa solução alternativa foi proposta pela defesa de Lula, caso o STF rejeite o pedido mais amplo de autorizar a prisão apenas com o trânsito em julgado da condenação. A ideia também consta nas duas ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs) que discutem a prisão em segunda instância de forma genérica, sem menção a um réu específico.

A ideia da execução da pena após a decisão do STJ já foi encampada pelo ministro Dias Toffoli. Gilmar Mendes indicou que estaria disposto a aderir. O decano da Corte, Celso de Mello, disse recentemente acreditar que esse seria um resultado possível quando o STF voltasse a se debruçar sobre o tema.

Embora o julgamento se dê no habeas corpus de Lula, a expectativa é que a decisão possa ter efeito para outros casos semelhantes. Para isso, os ministros precisarão determinar que a solução valerá para todos os casos no Judiciário que discutem a prisão em segunda instância.

Essa saída foi discutida no dia 22 de março, quando o STF começou a julgar o habeas corpus de Lula. Durante o intervalo da sessão, no momento conhecido como o cafezinho dos ministros, integrantes da corrente que defende a mudança na jurisprudência abordaram Cármen Lúcia e defenderam, mais uma vez, que ela levasse para julgamento as ADCs, que discutem a prisão em segunda instância de forma genérica, e não o habeas corpus de Lula. Como a presidente do STF mais uma vez se recusou a pautar as ações genéricas, os ministros propuseram que a decisão no caso de Lula tivesse efeito abrangente.

Apesar do clima que prevalecia ontem nos gabinetes dos ministros, o resultado do julgamento de hoje ainda é considerado incerto e depende do voto da ministra Rosa Weber, que se demonstra impenetrável. Algumas fontes apostam que o ministro Alexandre de Moraes, que já votou a favor da prisão em segunda instância, também poderia admitir algum tipo de revisão na atual jurisprudência.

Nas últimas semanas, a pressão sobre os ministros do STF aumentou exponencialmente. Ontem, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, defendeu enfaticamente a prisão em segunda instância e disse que o entendimento contrário "aniquila o sistema de Justiça, exatamente porque uma Justiça que tarda é uma Justiça que falha". Para ela, o entendimento de que a sentença só pode ser executada depois de ser confirmada por quatro instâncias do Judiciário é "exagerado".

O comandante do Exército, general Villas Bôas, recorreu às redes sociais para externar a posição oficial da instituição. No Twitter, onde tem mais de 119 mil seguidores, o general afirmou que o Exército compartilha "o anseio de todos os cidadãos" e está atento às suas missões. A íntegra da mensagem foi redigida numa sequência de dois tuítes.

"Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do país e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?", questiona na primeira mensagem.

"Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais", completa o general.

Também ontem, o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot, que em 2016 representou o Ministério Público no julgamento do STF que passou a admitir as prisões em segundo grau, disse que a medida foi fundamental para o fechamento de grande parte dos acordos de delação premiada na Lava-Jato.

A Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal (ADPF) divulgou nota pública pedindo que o STF não mude de opinião. "A protelação da efetiva aplicação da lei penal e a utilização de infindáveis recursos são prerrogativas quase que exclusivas daqueles que detêm o poder econômico e político", diz o texto. Para a associação, se a jurisprudência for revista, o resultado será "um sistema de justiça penal ineficiente, injusto e seletivo".

A ADPF apontou que, desde a Constituição de 1988 até 2009, prevaleceu no STF o entendimento de que a prisão em segunda instância não contrariava preceitos constitucionais. A associação atribui a mudança ocorrida em 2009, quando passou-se a exigir o trânsito em julgado, ao julgamento do processo do mensalão. "A volta ao entendimento inicial se deu em meados de 2016, após elevado aumento dos índices de violência urbana e descoberta do maior esquema de corrupção da história brasileira até então", diz o texto.

Os ministros do STF também vêm sendo alvo de grande pressão popular em torno da discussão que selará o destino de Lula. Só o gabinete de Cármen Lúcia recebeu, na semana passada, 14 mil e-mails por dia sobre o julgamento - a maioria defendendo a prisão de Lula, com mensagens como "Resista, Cármen Lúcia", e declarações de "confiança no STF". Outras traziam textos a favor do ex-presidente. Só ontem, até as 16h30, o gabinete da ministra havia recebido 9 mil e-mails sobre o assunto. Diante das manifestações convocadas por grupos pró e anti-Lula, o acesso de veículos à Esplanada dos Ministérios foi fechado à meia-noite de ontem. (Colaborou Andrea Jubé)

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Para Gilmar, Corte precisa evitar 'desmandos de poder'

Flávia Motta

04/04/2018

 

 

Na véspera do julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o ministro Gilmar Mendes disse que a decisão da Corte é "extremamente vital" para pacificar o país. "Qualquer que seja o resultado, pró-execução em segundo grau ou não, me parece que haverá uma acomodação e uma pacificação em relação ao tema". Gilmar está em Lisboa para a abertura do 6º Forum Jurídico da Universidade de Lisboa, mas retornou ontem mesmo ao Brasil.

Segundo Gilmar, "é claro que ter um ex-presidente da República como o Lula agora condenado é muito ruim para a imagem do Brasil. Mas a longo prazo me parece um fortalecimento do modelo institucional brasileiro".

Gilmar afirmou que a Corte tem de evitar que ocorram "desmandos de poder". "Quando você concede um habeas corpus a alguém e limita o poder, por exemplo, de um juiz, promotor ou delegado, irrita muitas pessoas. Mas a gente protege aquele que está irritado", disse. Segundo o ministro, "o desmando de poder, num dado momento, vai atingir também aquelas pessoas que antes torciam pela prisão de A e agora vira B, vira C".

Gilmar disse que o Supremo precisa estar preparado para contrariar a opinião pública. "A gente tem que ser preparado para um ethos contramajoritário. Contramajoritário quanto ao Legislativo, que decide coisas que a gente depois reverte, e contramajoritário em relação à opinião pública". E ironizou as pressões que recaem sobre o tribunal.

"Isso faz parte de nosso processo público, que talvez no Brasil tenha se tornado exageradamente público. Hoje já se discute muito o televisionamento das sessões e tudo mais. E todos palpitam. Assim como falávamos que tínhamos 200 milhões de técnicos de futebol, agora temos 200 milhões de juízes".

No mesmo evento, o relator do processo que condenou e ampliou a pena de Lula na segunda instância, desembargador João Pedro Gebran Neto, que atua na 8ª turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) fez uma defesa da jurisprudência atual.

"Acredito que a Constituição autoriza e é o que é melhor para o Brasil no combate à impunidade, no combate a uma criminalidade bastante grave. E eu não estou me referindo só aos crimes de colarinho branco, aos crimes de corrupção. Estou me referindo a um país que mata 64 mil pessoas por ano e que poucos desses casos são sequer objeto de descoberta de quem é o autor do homicídio".

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Autores de regra constitucional refutam interpretação atual

Ricardo Mendonça

04/04/2018

 

 

Se quiser ser fiel às intenções dos parlamentares que se debruçaram sobre a questão da presunção da inocência na Assembleia Constituinte de 1987 e 1988, o Supremo Tribunal Federal (STF) não tem outra alternativa hoje a não ser conceder habeas corpus para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e, dessa forma, impedir ou adiar sua prisão. Precisaria ainda rever seu atual entendimento favorável a cumprimento de pena após condenação em segunda instância.

Quem afirma isso são os dois parlamentares da Constituinte que mais se envolveram na redação do dispositivo que hoje está no centro desse debate: o ex-senador e ex-governador do Espírito Santo José Ignácio Ferreira e o ex-deputado petista Sigmaringa Seixas, hoje advogado em Brasília. Naquele período, eles pertenciam ao PMDB. Em 1988, ambos ajudaram a fundar o PSDB.

Toda polêmica está em torno do item LVII do Artigo 5º da Constituição. Diz o texto que "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Trânsito em julgado é a expressão jurídica usada para processo encerrado sem nenhuma hipótese recurso.

Na legislação anterior à Constituição de 1988, o réu só podia apelar contra uma decisão cumprindo a sentença, de acordo com o artigo 594 do Código de Processo Penal, segundo José Ignácio. O Código foi posteriormente adaptado à Constituição.

O maior responsável pela colocação da polêmica norma na Constituição de 1988 foi o tucano José Ignácio. Conforme o acervo dos trabalhos da Constituinte na Câmara, partiu dele a sugestão original de redação que resultou no atual item LVII do Artigo 5º.

José Ignácio era relator-adjunto da Constituinte designado pelo relator, Bernardo Cabral. Ele atuou na função com Fernando Henrique Cardoso, Nelson Jobim e José Fogaça, todos do PMDB na ocasião. Em entrevista ao Valor ontem, disse que não há hipótese de os constituintes terem aprovado a redação do item LVII do Artigo 5º imaginando que estavam permitindo prisão após segunda instância.

"Naquela época ninguém pensava que poderia acontecer um caso como o atual", disse. "A ideia era permitir recurso até a última instância mesmo. É preciso considerar que a gente estava com o sistema militar atrás de nós. Eu fui cassado [na ditadura], fiquei dez anos sem direitos políticos. Então estávamos construindo uma vida nova. Isso explica o que está lá. Pensamos esse artigo porque havia toda uma realidade que nos compelia a fazer desse jeito."

O item LVII do Artigo 5º, diz, foi criado para caracterizar tecnicamente a presunção de inocência. Não existia nas Constituições anteriores. Sua sugestão original foi apresentada em 5 de maio de 1987. Diz o arquivo da Câmara que José Ignácio sugeriu "norma que disponha sobre a presunção de que todo acusado seja considerado inocente até o trânsito em julgado da sentença condenatória". No dia seguinte, ele mesmo alterou o teor da proposta: "Sugere que ninguém seja considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, e ao indiciado ou acusado seja assegurado o direito do silêncio."

Para o ex-senador, o Supremo "vive uma situação muito difícil". "Que [a prisão após segunda instância] colide com a Constituição, não há dúvida", completa.

Sigmaringa foi o autor de uma das 15 emendas apresentadas ao longo dos trabalhos para aprimorar o texto. A maioria era no sentido de alargar as garantias. Uma delas, por exemplo, pedia a supressão da expressão "penal" para permitir a aplicação da norma "em todos os ramos do Direito". Sigmaringa propunha a redação "nenhuma pessoa será considerada culpada (...)", pois entendia que a palavra "pessoa" era mais abrangente que o conceito de "cidadão".

"A redação reflete o período que estávamos vivendo. A gente tinha acabado de sair da ditadura", explica Sigmaringa. "O que se tinha era realmente uma preocupação muito grande com a possibilidade de se impor uma pena forte e depois, no recurso, ficar provado que a pessoa não havia cometido o delito. Então é preferível aguardar o julgamento final em liberdade do que manter presa uma pessoa que depois se revela inocente. Ainda que, estatisticamente, isso seja pouco."

Ele também refuta a hipótese de constituintes terem aprovado a norma acreditando que aquilo representava prisão após condenação em segunda instância.

Diferentemente do que ocorre hoje, o tema não parece ter gerado polêmica em 1987-88. "Não lembro de nenhum debate sobre esse dispositivo", disse Sigmaringa. José Ignácio, que depois foi pivô de um caso rumoroso de corrupção, diz que também não se recorda. A Câmara informou que não localizou transcrições de discussões específicas sobre o tema.

Quem defende prisão após condenação em segunda instância argumenta que os recursos cabíveis ao STJ e ao STF não permitem a reanálise de provas. A segunda condenação, portanto, já poderia ser entendida como final. Dizem ainda que são raros os casos em que recursos a tribunais superiores resultem em absolvição. A norma, reclamam, serve mais à impunidade.