O globo, n. 30898, 12/03/2018. Editorial, p. 12

 

Concorrência saudável

12/03/2018

 

 

A discussão sobre os aplicativos de transporte de passageiros, como o Uber, não acontece somente em cidades brasileiras, mas em metrópoles do mundo inteiro. Não surpreende. Toda vez que uma nova tecnologia é incorporada ao dia a dia dos cidadãos, ela rompe paradigmas, muda comportamentos, agita mercados e gera descontentamento em grupos e corporações que resistem a se adaptar aos novos tempos. Aconteceu na Revolução Industrial, e tem sido assim ao longo dos séculos. Mas, como mostra a História, algumas mudanças são inexoráveis.

É esse o caso dos aplicativos de transporte. Oferecendo comodidade — o serviço é pedido pelo telefone celular — e tarifas competitivas, eles conquistaram uma legião de passageiros, tanto no exterior quanto no Brasil. E, aqui como lá, despertaram a ira de taxistas, que até então se beneficiavam de uma descabida reserva de mercado.

No Rio, taxistas promoveram uma série de protestos e, em alguns deles, chegaram a parar a cidade, prejudicando a rotina de milhares de cidadãos, para pressionar as autoridades a não liberar os aplicativos de transporte. Mas convém lembrar que serviços como Uber, Cabify e 99 cresceram no vácuo dos maus serviços prestados por alguns taxistas. Corridas cobradas fora do taxímetro — especialmente quando se trata de turistas —, tarifas superdimensionadas e falta de cortesia com passageiros, para citar apenas alguns fatores, deram gás à concorrência.

Mas, apesar de o uso de aplicativos de transporte ser uma realidade, a força das corporações de taxistas junto aos governos conseguiu retardar o quanto pôde a regulamentação. No Rio, o serviço ainda é proibido por lei, sancionada pelo prefeito Eduardo Paes, e funciona amparado por uma liminar da Justiça — recentemente, o prefeito Marcelo Crivella afirmou que pretende regulamentá-lo.

Depois de dois anos de debates, a Câmara aprovou, no dia 28 de fevereiro, o PL 5.587, de autoria do deputado Carlos Zarattini (PT-SP), que regulamenta o serviço. É bem verdade que, originalmente, o projeto, amplamente favorável aos taxistas, praticamente inviabilizava o funcionamento dos aplicativos. Mas deputados e senadores tiveram o bom senso de alterar alguns dos pontos principais da proposta. Foram retiradas do texto, por exemplo, as exigências de placas vermelhas (usadas por táxis) e de autorização prévia das prefeituras.

O importante é que agora existe uma base legal para a regulamentação. Não se pode mesmo continuar fechando os olhos para essa realidade. O serviço já é regulamentado em cidades como São Paulo, Brasília e Goiânia. Pelo projeto recém-aprovado, as prefeituras poderão definir suas próprias regras — como limitar o número de veículos por aplicativo — e, portanto, terão condições de se planejar para evitar transtornos ao trânsito.

A concorrência saudável beneficia o usuário, que terá mais opções de escolha, e, por que não dizer, os próprios taxistas, que certamente vão melhorar seus serviços.

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Mais congestionamentos

Carlos Zarattini

12/03/2018

 

 

Com a aprovação no Congresso do projeto de lei 5.587/16, de minha autoria, o serviço de transporte individual remunerado de passageiros prestado por aplicativos digitais como Uber, Cabify e 99 passa a ser regulamentado e fiscalizado pelos municípios. Uma mudança significativa na legislação que poderá diminuir a concorrência predatória contra os taxistas e colocar freio na exploração dos motoristas prestadores do serviço que hoje chegam a pagar taxas de 30% do valor da corrida realizada. A regulamentação também vai garantir maior segurança aos usuários e a manutenção da qualidade do serviço. Uma vitória importante e árdua, já que, durante a votação do projeto, o Uber investiu milhões de reais em lobby e publicidade para impedir uma legislação mais rígida.

Mesmo com esse avanço importante na legislação ainda há um longo caminho a ser trilhado. A atuação dessas empresas gera impactos preocupantes na mobilidade das grandes cidades. O sistema contribui para aumentar os congestionamentos porque os motoristas dos aplicativos tendem a esperar nas regiões de maior fluxo de passageiros. Ou seja, os veículos não saem das ruas. A proliferação de motoristas incluídos no sistema sem controle causa crescente degradação. A frota do Uber está estimada em 150 mil veículos na capital paulista.

Com a experiência de ter exercido o cargo de secretário de Transportes da cidade de São Paulo, destaco que o avanço tecnológico é essencial para buscar soluções rápidas e inteligentes para melhorar a mobilidade, mas é preciso planejamento e controle do Poder Público. Entretanto, multinacionais passaram a controlar o mercado brasileiro sem investir em estudos técnicos de impacto e buscando a maximização dos lucros.

Outro ponto de preocupação é a possível migração de passageiros do transporte coletivo para o transporte por aplicativos. Estudos já confirmam esse fenômeno em Nova York e São Francisco. Há uma tendência de o cidadão optar por pedir um Uber para percorrer curta distância, abandonando o transporte público. Se confirmada, vai gerar mais poluição e congestionamentos.

A tendência é que essa situação se agrave. O Uber já planeja atuar diretamente para enfraquecer o sistema público de transporte. Segundo o “Financial Times”, eles querem expandir o negócio absorvendo linhas do transporte coletivo, desregulamentando os sistemas municipais. Esse movimento tecnológico seria relevante se contribuísse para melhorar a qualidade do transporte coletivo, que hoje é caro, lento e de baixa qualidade, o que facilita a investida dessas multinacionais. A saída para impedir o caos na mobilidade urbana brasileira é investir no sistema de transporte público com mais corredores de ônibus, renovação da frota e ampliação linhas de metrô com recursos dos impostos recolhidos na taxação dessas empresas.